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“Clarabóia” de Morena Nascimento - Um palco ao avesso: uma alusão ao “Entr´acte” de René Clair



Por Carolina Natal
06/10/2012

O espetáculo Clarabóia foi realizado no Centro da Cultura Judaica em São Paulo. A particularidade
dessa obra se associa com a própria escolha do local a ser apresentado. O prédio que acolhe este Centro tem um estilo moderno, de concreto, com grandes janelas de vidros que são entremeadas por uma persiana externa que sugere um movimento em forma de onda, trazendo leveza ao concreto, que é bruto em sua própria matéria. 

Diante desta arquitetura que se impõe, o palco de Morena Nascimento, bailarina e diretora da obra juntamente com Andreia Yonashiro, não se encontra no teatro, ele se faz existir no teto do andar térreo. Ao olhar para cima, lá se encontra a bailarina, debruçada sobre seu público, sustentada por um vidro transparente que funciona como um recorte no teto, o qual permite passar a claridade da luz natural.
Tal proposta de engajamento entre a dança e o espaço físico só poderia ser realizada em um local que de fato tivesse a cumplicidade entre ambos. E assim, de maneira muito especial, faz desta clarabóia, seu próprio palco ao avesso. 

A mudança da composição espacial confere uma nova relação entre a obra e o espectador, sendo, este último, convidado a fruir a obra sob a inversão do eixo, não mais alinhado frontalmente, mas literalmente abaixo, na perspectiva inferior. Assim, criam-se situações inusitadas ao espectador, que observa a bailarina suspensa praticamente sobre ele. Diante desta nova sugestão ao público, Rancière (2012, p.21) explica:

É nesse poder de associar e dissociar que reside a emancipação do espectador, ou seja, a emancipação de cada um de nós como espectador. Ser espectador não é a condição passiva que deveríamos converter em atividade. É nossa situação normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos também como espectadores que relacionam a todo instante o que veem e ao que viram e disseram, fizeram e sonharam.” 

Assim, o público é acomodado deitado ao chão tendo esse palco como uma grande tela em que se projeta o filme. A tela seria o vidro no qual a bailarina se apóia. Criam-se dois ambientes que se dialogam através da transparência, cria-se um exílio. Exílio este que tem como parâmetro o retiro, a solidão, simbolizando, então, uma outra forma de desterro. Tal distanciamento, provocado por este exílio, permite que a bailarina crie um mundo paralelo, no qual podemos acessá-la somente pela visão, pois o som, que por vezes ela emite, só se percebe pelo visual e não pelo auditivo. Assim, cria-se e preenche-se um ambiente sonoro independente que se direciona ao público.

Todo trabalho coreográfico é visto sob outra perspectiva, a contra-plongé, ou melhor, debaixo para cima, configurando formas raramente visualizadas, considerando diante de um panorama tradicional em que o espectador se encontra na mesma altura do bailarino. Assim, Nascimento inverte o eixo da horizontal para o vertical. Esta ideia já fora lançada por René Clair, um dos maiores cineastas franceses, a obra Entr´acte (1924), no qual uma bailarina saltava sobre um vidro e a câmera a captava na posição contra-plongé. Esta cena, vista sob o olhar contemporâneo, ainda provoca a reação do inusitado, do inédito, flagra-se a suspensão pela novidade. Aliás, manter o frescor dessa novidade depois de tantos anos é um primor e, ainda,  atualizá-la na perspectiva de um espetáculo em tempo real, é outra provocação.
                                    
Em Clarabóia, Morena Nascimento além de saltar sobre o vidro ela explora diversas outras ações como deslizar, apoiar, observar,  fazendo dele um objeto de cena em que ela contra-cena a todo tempo. Assim, ela investiga diversos materiais em cena como novelo de lã, bolinhas transparentes que caem sobre o vidro, saias longas que vestem parte do vidro e alguns detalhes gestuais que nos remetem ao universo da coreógrafa Pina Bausch, com quem Nascimento trabalhou por um tempo. Têm-se como exemplo a ação de limpar o vidro, o chão em que ela pisa, com uma vassoura, observando atentamente e indiretamente o espectador, o qual se encontra na mesma direção, abaixo. Tal despojamento e naturalidade, com uma dose de ironia, é que nos conduzem às cenas Bauschianas, como um momento do filme “O Lamento da Impertatriz”, em que um rapaz se barbeia diante do reflexo de uma poça d´água que permeia a calçada e a rua. O sublime do trabalho de Bausch é isso, é transformar o  inusitado e o surreal desta cena em natural.  É tão absurda que se torna possível de ser real. E este me parece ser o segredo de Bausch: a invenção de uma  nova realidade.

No vidro, a bailarina experimenta a sensação de ser lançada pela tensão de elásticos que a suspendem em suas extremidades, fazendo-a flutuar por instantes. Observam-se nuvens que se movimentam pelo céu transformando-se casualmente em objeto de cena.

Em um determinado momento é lançado tinta sobre o vidro e a bailarina se joga e se escorrega neste novo cenário. Seu corpo mistura as cores e re-inventa novos tons. Seus movimentos desenham o espaço, redefinindo novas figuras de acordo com seu gestual. É um quadro que se molda pelo movimento. A dança escorrega desses escapes, dessa fluidez que não delimita formas, mas provoca intenções e imagens, incessantemente.

Gotas d´água vão invadindo o vidro e a tinta dissolve-se nela mesma. Cria-se um efeito diferente diante desta queda d´água, mas só se entende a origem desta sensação quando se  vê a água escorrendo de uma mangueira, diluindo a tinta, os desenhos, as formas e deixando a fluidez da sensação do movimento e da transformação.

Referência Bibliográfica:
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.
- Link do video/publicidade do "Clarabóia": http://vimeo.com/47183701