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"Gira" - Grupo Corpo

Por Carolina Natal
10/10/2017


 “O terreiro é o laboratório existencial do povo brasileiro”
Graziela Rodrigues

Gira é um espetáculo que representa transformações profundas na linguagem corporal do tradicional Grupo Corpo. Rodrigo Pederneiras, diretor e coreógrafo da Cia, sempre selou como identidade de suas obras uma brasilidade expressa nos corpos, nas músicas e nas precisões que compõem toda essa mistura, dialogando, inevitavelmente, a tradição da construção de uma corporeidade brasileira com inventividades.  Sempre imerso nesse timbre que assina corpos como fruto de uma cultura, Pederneiras lançou-se, em Gira, para um resgate que associa o corpo às imagens, nesse caso ressignificadas, da religião Umbanda.

A escolha da Umbanda, que é uma religião brasileira, reforça a tônica atribuída a essa identidade nacional que Pederneiras construiu ao longo da trajetória do Grupo Corpo. O palco se transforma em um terreiro, alojando distintas dinâmicas de movimento. É nesse terreiro, que os bailarinos do Grupo Corpo foram “convocados” para experimentos de uma nova proposta corporal que reorganiza todo o eixo até então construído e amadurecido por esses bailarinos. Enlaçados por uma trajetória corporal dominada pelo eixo vertical com fortes influências da técnica clássica, assim como as precisões infundidas por essa modalidade, Pederneiras provoca uma ruptura com esse padrão identitário e aventura-se a uma dinâmica de quebras no tronco, como se fosse um pulso, que palpita diferentes acionamentos musculares. Nesse sentido, essa coluna vertebral que sinalizava sempre a posição vertical se desdobra em movimentos ondulares, em quebras precisas que provocam novas sensações e estéticas à linguagem do Grupo, mas sempre mantendo sua rigorosa precisão de movimentos.

Ao invés da elevação, da suspensão e dos saltos com ênfase na elevação, Gira propõe o inverso, a noção do peso, em que o espaço interno da bacia expande-se, reverberando em todo tronco, flexibilizando os movimentos ondulares da coluna.  Vê-se que a mobilidade desse eixo torna-se necessário justamente para equilibrar as possibilidades de movimentos que normalmente surgem desse ritual.

É possível aproximar uma leitura desse corpo da Umbanda com o próprio samba, na medida em que ambos traçam esse peso firme e a flexibilidade da coluna. Arrisca-se dizer que Gira traça similaridades dos passos do samba, transformados e apropriados na linguagem da própria Companhia, revelando corpos com a plasticidade híbrida, assim como a própria formação da religião Umbanda que se mistura entre católicos, espíritas e indígenas.

Com saias brancas e os troncos nus, o que evidencia ainda mais o movimento do tronco, os bailarinos movimentam-se homenageando EXU, que é considerado o mensageiro dos Orixás no Candomblé. Simbolizam festejos em terreiros, rituais que acessam as passagens do sensível, delicadezas em gestos que se transformam em dança. Nesse contexto, a pesquisadora Graziela Rodrigues ressalta os aspectos que interagem com esse percurso sensível: as lembranças, os deslocamentos das emoções e dos afetos e as sensações. O corpo é regado dessas referências que transbordam em movimentos.

Gira representa um marco de renovação para o Grupo Corpo, através da investigação de movimentos proposto pelo Grupo Corpo e, ainda, somando-se a essa experiência corporal, vê-se a força da representatividade de Exu, como mensageiro, exprimindo também a força de sua própria encruzilhada, como dono de seu próprio caminho. Diante de tantas dificuldades dos grupos de Dança sobreviverem, o Corpo resiste e, inteligentemente, acena para novas saídas, para cruzamentos até então não explorados por eles, antecipando outras mensagens corporais e a esperança de outras continuidades e sobrevivências. Gira representa esse suposto laboratório existencial do povo brasileiro.