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SOBRE VOCÊ, EM MIM - Texto sobre o espetáculo “Já que sou, o jeito é ser” – Cia 5 - direção de Eduardo Ferreira e Angélica Evangelista

 por Carolina Natal
18/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 
Fotografia: Paulo Amaral

“Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então.
Clarice Lispector

Já que sou, o jeito é ser é uma obra da Cia 5 que está em circulação e integra o Programa de Qualificação em Artes do Governo do Estado de São Paulo, com curadoria de Ismael Ivo. O trabalho propõe diversas linguagens artísticas tendo como pretexto as obras da escritora Clarice Lispector. Através dos corpos em cena, os intérpretes firmam relações entre a dança, o teatro e as artes visuais, propondo uma performance em que as pessoas passeiam pelo espaço, esbarrando-se nas imagens das escritas de Clarice, destilando o que há de mais banal e surpreendente nas narrativas da autora: o cotidiano.

O espaço proposto para a apresentação dessa obra foi a residência Olivo Gomes, projetada pelo arquiteto modernista Rino Levi, sediada no Parque Municipal Roberto Burle Marx, na cidade de São José dos Campos. É um patrimônio que recentemente abriu as portas para a cidade.

Inserida no Parque, construída de frente a um lago e rodeada de paisagem natural, a casa estabelece uma relação muito íntima com a natureza, através de suas paredes de vidros, que delimitam o espaço entre o dentro e o fora. Ou melhor, que tendem a não traçar essa fronteira e provocar a sensação de estar dentro, mas se sentindo fora, através da natureza que invade e amplia o espaço interno, desafiando a continuidade desses espaços que se conectam.

Para ter acesso a essa casa é necessário atravessar o parque. A caminhada noturna, escoltada pelo próprio público, aguça a curiosidade da dinâmica do próprio cotidiano dessa notável residência, que desperta algo imponente. 

As ações dos intérpretes estão espalhadas por cinco cômodos da casa, de forma simultânea e, em cada qual, uma transcrição cênica de Clarice associada às releituras de cada performer. Na sala, o primeiro ambiente da casa, sentimos a imponência desse espaço amplo que nos conecta com a natureza externa, através das grandes janelas em vidros. Um performer está ao chão, sobre um grande papel branco, onde traça imagens desse cotidiano, desenhando objetos do dia-a-dia e linhas abstratas. Ele rola e se gesticula nessa tela em que se desenha, brinca com o olhar que observa e imediatamente se transforma em traços. Reconstrói essa convivência passageira do cotidiano, rodeada de público, e desenha também no espaço, compondo linhas imaginárias que flutuam. Gesticula-se concentrando na relação entre as imagens desenhadas provindas do contexto da escritora, sobrepondo-se à realidade que se apresenta a partir desses observadores que o rodeiam. É uma cena convidativa, que permite a intervenção do público sobre este tapete de papel.

Adentrando os outros cômodos da casa, há uma porta entreaberta com um performer que conversa com um espectador, frente à frente, separados por uma mesa. Olhando de fora, há a leitura de uma conversa banal, extratos de realidades íntimas que se compartilham, como uma cena de um filme, em que não há a necessidade de lançar o áudio, pois a cena à distância explica-se por ela mesma, basta observá-la...

Seguindo, depara-se com a representação da cena de uma galinha e seus ovos, no pequeno banheiro da casa. Essa imagem faz uma alusão imediata ao conto Uma Galinha da escritora. O performer aciona seu corpo, inserindo imagens das asas, do chocar, balbuciando sons típicos de uma galinha. A imagem da galinha, embora aparentemente ingênua, resgata o que há de mais cotidiano na nossa existência: os ciclos da vida. Nascimento, vida e morte, sendo reforçado pela presença do ovo, que simboliza renovação.

Fotografia: Paulo Amaral
O intérprete espreita o público com um olhar que se condensa em fragilidade, em força, em resistência, em desespero, em angústia. Todas essas sensações são projetadas pela própria imagem dessa galinha, que suplica para não virar uma iguaria a serviço do prazer alheio. Nada como o milagre do ovo, do nascimento, para sensibilizar as pessoas. No entanto, amanhã tudo volta ao normal...

Uma porta ao lado exibe o cartaz dessa imagem ao lado.  

De forma ambígua, esse quarto sugere o refúgio ao espaço íntimo, em que um expectador adentra e pode esquecer o mundo afora e ser ele próprio. Contudo, a proposta é fazê-lo diante de uma câmera assentada sobre um tripé. Trata-se de um observador oculto dotado de uma agilidade e uma potência incomparáveis, capazes de tornar essa intimidade aparente uma grande janela exposta ao mundo.

Por fim, chega-se ao último cômodo onde há a interferência da ação de uma mulher, que ocupa um quarto vazio e fala sozinha, por meio de seu corpo. Sua fala corporal conversa com suas roupas, que são retiradas e recolocadas, às vezes, inclusive com a ajuda de um espectador que, ao vesti-la, veste-se dela também, com um longo abraço. Veste-se ao avesso, veste-se as pernas nos braços. São metáforas de desorganizações emocionais que obrigam a continuidade, mesmo que inventando outras formas, mas que são possíveis. São pedaços dos amores e desamores e dos conflitos humanos. Nas palavras de Clarice: “...em mim mesma eu vi como é o inferno.”

Já que sou, o jeito é ser convida o público a presenciar cotidianos tão reais, tão onipresentes que tratam dos reflexos entre a arte e o apreciadorsobre você, em mim.