Por Carolina Natal
22/09/2012
22/09/2012
A SPCD estreou na capital paulista a primeira montagem de Kylián com bailarinos brasileiros. A Cia, fundada em 2008, possui em seu repertório composições clássicas e contemporâneas e devido a sua alta qualidade técnica e expressiva tem se projetado como uma grande aposta representativa da Dança no Brasil.
A obra Sechs Tänze foi lançada em 1986 e, quase vinte anos após sua estreia essa obra continua sendo impactante justamente pelo seu caráter crítico, atual e permeado de expressividades que tateiam o universo da dança-teatro. Segundo o programa do espetáculo, Kylián diz que “a música foi o principal elemento para a criação desta obra”.
Kylián optou como repertório musical a composição de Mozart para Sechs Deustsche Tänze KV 571. Ela é composta por seis peças que retratam um período de corte, solene, representado por um ambiente soberano. No entanto, ao invés de reproduzir apenas a caricatura do que conhecemos desta época suprema e absoluta, Kylián rega a composição de Mozart com humor, transformando a intocável altivez em sátiras extremamente carnais, do ser humano.
Os bailarinos estão vestidos de branco e com penteados típicos de uma cena de época, de corte. Seus rostos também são pintados de branco, mas sua monotonia é pincelada com alguns detalhes em cores nos lábios, na bochecha, configurando quase um rosto circense. Este impacto desses corpos em branco é suavizado, então, pelas cores que sugerem o tom perspicaz e crítico que o coreógrafo confere à obra.
Impossível não associar ou relembrar a célebre obra May B da coreógrafa francesa Maguy Marin ao ver esses corpos brancos em cena. O que tem em comum entre ambas é o aspecto de uma dança Macabra, contudo, é a condução conferida pelos coreógrafos que diversifica e atualiza os olhares sobre o termo macabro.
A dança macabra representa o próprio terror, simbolizada por uma procissão que desfila seguindo um caminho que é o da morte. A dança cumpre a função de ser um eufemismo desta condução, uma leveza diante de uma realidade inevitável. Em outras palavras é como se a dança fosse capaz de agregar toda a diversidade, todas as posições sociais, seja desde o rei, papa, monge até o plebeu, todos em forma esqueletal ou sugerindo algo parecido. Tais ilustrações surgiram na época medieval durante a Peste Negra que dizimou milhares de pessoas. Devido ao grande impacto desta peste, a dança macabra surgiu simbolizando a fragilidade da vida, indicando que ninguém escapa e todos estão sujeitos.
Neste sentido, Marin coloca em cena corpos deformados, errantes imóveis, grotescos, assimétricos, vestidos com pijamas uniformizados. Ela utiliza o recurso do emprego da farinha branca sobre os rostos, simulando uma cena pálida, ausente de vida, é o próprio terror que se instala. Nessa obra, todos os gestos dos bailarinos são incompatíveis com o que se espera de uma cena de dança. A coreógrafa provoca uma ruptura estética ao propor exatamente o oposto que o bailarino trabalha para mostrar a força e movimentos corporais que sugerem apreciações estéticas.
No entanto, ao deslocar a dança desta apreciação para conduzir ao universo do horror, Marin está colocando em questão situações em cena que se inserem na tradução de um combate, de uma catástrofe, representando quase um cenário de guerra. Tal cenário é representado apenas pelos próprios corpos, são eles mesmos os próprios sujeitos agentes e receptores da própria catástrofe. Colocar corpos em cena para deflagrar o horror não é uma tarefa simples, considerando que a composição feita nesta obra não evidencia os clichês mais comuns: o sangue, o esqueleto, entre outros.
O horror em May B está instalado no gestual, na postura corcunda, no olhar, nas falas sem voz, nos olhares sem esperança ou que testemunham alguma cena, que avançam e fogem ao mesmo tempo, que provocam, mas se protegem, corpos que querem reagir, mas a circunstância é opressora, desfavorável. Todas essas expressões e gestuais sutis compõem por si só o cenário do horror.
A alusão à imagem do esqueleto, que é característico da dança macabra, metaforiza-se por estes corpos que aparentam doentes, atrofiados, desnutridos.
Jirï Kylián segue um percurso completamente diferente de Maguy Marin. Ele opta por cadenciar o tom macabro através do humor, da sutileza e de corpos extremamente ávidos que reagem ironicamente às situações fúnebres que podem ser simbólicas, representativas ou não. Kylián se firma pela capacidade de transformar a tragédia macabra em revelações que evidenciam a ousadia da inteligência. O horror, diferentemente de May B, está instalado na avidez dos corpos, das danças, das caricaturas que se divertem com suas próprias malícias.
Kylián conduz essa leitura se apropriando dos diferentes acordes da música constituindo, junto com ela, a força deste drama.
O corpo de bailados da SPCD trouxe e afirmou, com muito vigor, esse ambiente insólito e as cores, reais e metafóricas, sobre esses corpos brancos atingindo a proeza de ressaltar o humor do que a princípio é trágico.