Por Carolina Natal
08/03/2016
08/03/2016
“Eu
não estou interessada em saber como as pessoas se movem, eu estou interessada
no que as faz mover.” Essa célebre citação de Pina Bausch
permeou minhas reflexões diante do espetáculo Disabled Theater do coreógrafo francês Jerôme Bel com a Companhia
Suíça Theater Hora, que promove o desenvolvimento artístico de pessoas com
deficiência de aprendizado.
Jerôme Bel provoca uma
situação avessa: ao invés de seguir os protocolos estéticos da dança, que normalmente
priorizam a técnica ou um padrão que se engessa no discurso da beleza e da
virtuosidade, Bel se concentra em outros modos de organização que incitam
discursos múltiplos, rompendo as políticas de representação revelando outras realidades
que também podem se apropriar da dança. Mas para isto se instaura a
problemática, que dança é essa?
Disabled
Theater é um ato corajoso que revela as preciosidades mais
espontâneas dos indivíduos com deficiência de aprendizado. O espetáculo inicia com
a entrada de cada integrante, um por vez, que se coloca na parte frontal e
central do palco. Simples assim. Nada mais. Apresentam-se apenas sendo, eles
mesmos. Fitam o público, cada um a seu modo, uns mais dóceis, outros
aparentemente com olhares mais agressivos, diretos, e em cada caminhar, de
entrada e saída, reconhecemos diferentes corpos que guardam em si diferentes
formas de se movimentar e gesticular diante do mundo.
Depois desta breve
apresentação de cada um, eles retornam e ficam sentados em cadeiras que estão
dispostas num formato meia lua. Cada qual ocupa seu lugar da maneira mais singular
de cada um. Neste momento já se percebe a autonomia desses integrantes, os
quais permanecem sentados a vontade, gesticulando conforme seus desejos.
Cada um apresenta um
solo, com músicas escolhidas por eles mesmos. Para cada solo apresentado, além
do solista que é o foco da ação, os demais que permanecem sentados ao fundo
literalmente roubam a cena. Apesar de não possuírem uma técnica específica de
dança, esses movimentos nos mostram, claramente, que existe algo maior que os
movem para essa expressão, que a cada batida da música cada um reage a seu
modo, mas extremamente conectado ao ritmo. Dominam o tempo da música e o tempo
do movimento. Dominam as intensidades de ambos.
Enquanto o solista se
apropria de sua dança, os demais também são contaminados para celebrarem e compartilharem
a experiência da espontaneidade da dança. Cada integrante possui um tipo de
deficiência, de memória, de aprendizado, de Síndrome de Down, mas o que se
percebe neste espetáculo é como a dança ultrapassa a insuficiência de uma
função mental e harmoniza e sincroniza esses corpos a partir do movimento
dançante. Bel coloca-os em cena para discutir não a dança como espetáculo, nem
a espetacularização de suas deficiências, mas, para além disso, a dança como
uma possibilidade, como um processo de aprendizado que regulariza outras
funções, não necessariamente advindas do aprendizado formal, mas do ato de
aprender questões que extrapolam à dança mas estão intrínsecas a ela: o fato de
se expor. Mas neste caso não se trata de lapidar sua beleza estética, mas de
lapidar sua realidade como ela simplesmente o é. Trata-se de resgatar
habilidades que possam ser emocionalmente resgatadas e fortificadas para o ato
da cena.
Uma das meninas que muito
me tocou, devido a sua firmeza nos gestuais, seu olhar forte, e seus movimentos
precisos, teve como trilha sonora a célebre música do Michael Jackson “They
don´t really care about us”. Uma escolha nada aleatória, e certamente política.
Uma escolha que deixa muito a dizer. Ela fez sua presença, marcante, através de
seus movimentos e pelo eco da letra dessa música que certamente acessou o
público de alguma forma.
No mínimo polêmico, mas
também necessário. Uma dança para todos.