Por Carolina Natal
Uma cortina de bordados ucranianos estendeu-se sobre o Brasil. Trata-se da temporada de apresentação do Balé Nacional da Ucrânia, que também deixou seus passos na cidade de São José dos Campos. Assim, a cidade comemorou em grande estilo, no dia 29 de abril, dia Internacional da Dança, a apreciação do espetáculo Virsky. Apesar da distância geográfica, a Cia pode reencontrar identidades similares às suas em sua maior colônia de ucranianos da América Latina, o Brasil.
Pode-se dizer que a cortina de ferro que dividia a Europa entre Oriental, socialista, e Ocidental, capitalista, hoje fora transformada em cortinas bordadas, as quais permitem docemente que a Companhia possa respirar outras culturas, transitar e apresentar em outros países e o mais precioso disso, difundir sua cultura e identidade. Assim, seus bordados em seus ínfimos detalhes ganham amplitudes tão singulares quanto a delicadeza de seu processo de formação.
Numa época tão automatizada, que dispensa os trabalhos manuais, a Companhia nos resgata e nos transporta diretamente para a experiência do humano, do sensível, de uma equipe colaborativa, que mantém sua originalidade na resistência de sua tradição. Na bagagem da Cia, conta-se com cerca de quatro toneladas somando-se as roupas, que são os diversos figurinos utilizados em cena, e a orquestra.
Tais figurinos foram todos bordados à mão, trabalho que certamente exige muita dedicação e atenção ao que se demonstra aparentemente pequeno. Estes trajes são diversos, em sua maioria coloridos, cheios de vida, com adereços e sobreposições. Tudo muito expressivo.
Os primeiros passos da Companhia fundada por Pavlo Virsky foi em 1937 e, somente ao longo dos anos e do reconhecimento de seu trabalho, é que fora reconhecido o mérito da Cia como porte “nacional”.
Atualmente, dirigida por seu discípulo Mykola Bolotov, que assumiu a direção em 1980, este busca visivelmente manter a linha de seu sucessor e, sobretudo, manter a dança folclórica como parte de seu repertório coreográfico.
O espetáculo é um convite às diversas lendas e mitos do país, atravessando-o geograficamente por meio desta aquarela de cores sobre o palco. Nele, revelam-se cenas de saudação, de rituais de combate, de heróis da guerra, do amor, a competição, sobre as bordadeiras, os marinheiros, os mercadores e a dança do grito, entre outros.
Diante de tanta disciplina e rigor técnico, a destreza e inventividade desta dança se firma na capacidade do coreógrafo mesclar toda essa dança folclórica, impregnada em seus corpos, sobretudo com a técnica clássica. Este livre trânsito, resultado das habilidades técnicas e corporais, possibilita que os passos da dança clássica sejam absorvidos com a originalidade latente da cultura popular deste povo. Assim, o vigor, a coragem e a delicadeza desses corpos transformam o folclore e a técnica clássica em um balé regado de originalidades e em diálogo com o contemporâneo.
Buscando alguma semelhança com estes corpos, sob a ótica das nossas referências, é possível ver a dança da quadrilha, em suas composições de casais, a dança com os pandeiros que nos remetem ao universo do samba, a lança pontuda em suas mãos que nos recorda os povos indígenas, a impressionante dança em posição agachada que nos conduz diretamente ao frevo e, finalmente, as rendeiras do Ceará. Assim, assistimos a esse espetáculo de origem geográfica tão distante, mas identificamos algo em comum, nessas danças, que nos aproximam.
Lanço destaque à dança das bordadeiras que tecem, com fios grossos, um lindo tear dançante, que incrivelmente se faz e se desfaz coreograficamente em cena. Diz a lenda que, segundo a tradição ucraniana, as noivas devem bordar uma camisa ao noivo antes de seu casamento. Esta dança retrata bem a delicadeza, harmonia e familiaridade da relação que estas mulheres estabelecem com esses fios.
E ao final, a dança do grito, altiva, com alguns solos de suspender qualquer espectador. Gritam, traduzem sons através dos corpos e acompanham, de forma sincrônica, o timbre musical durante o auge de seus movimentos virtuosos. É uma verdadeira visita ao povo ucraniano, mas através da dança.
Não poderia deixar de citar nossa grande escritora Clarice Lispector, ucraniana e naturalizada brasileira, que também nos traz a dimensão de possíveis proximidades e identificações culturais: ”É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Ouve-me então com teu corpo inteiro.”
Assim, ouvimos e vimos a obra com o corpo inteiro.