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TEMPO DE UM ESPAÇO - Texto sobre o espetáculo “Guarde-me” – Marcia Milhazes Cia de Dança

 por Carolina Natal
20/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

Fotografia: Ana Clara Miranda

"CARTA - A figura incide sobre a dialéctica particular da carta de amor, simultaneamente vazia (codificada) e expressiva (enriquecida da necessidade de significar o desejo)".
Roland Barthes

Guarde-me, dirigido pela coreógrafa Marcia Milhazes, abriga um universo de imagens sensoriais, advindas  de cartas entre anônimos, que vão sendo lapidadas através dos movimentos dos corpos de um casal, desafiados pelo ambiente sonoro, ao vivo, composto por um trio que aglutina diferentes sons: um violino, uma viola de gamba e uma espineta italiana. São instrumentos característicos do Barroco e que resistem hoje, sobretudo nesse espetáculo, reportando um resgate: permanência e possibilidade de traços dessa linguagem no contexto contemporâneo.

A obra faz alusão a cartas escritas, não presentes na cena em seu formato literal, que discorrem questões da existência, dos amores e desafetos. A tônica da obra é regada de simplicidade, de clareza nos movimentos e de um espaço cenográfico muito clean, a caixa branca. Os intérpretes e músicos estão inseridos nesse universo branco, o qual está profundamente calculado com a imposição da luz, recurso utilizado pelo barroco a fim de provocar um impacto emocional.

A precisão técnica e artística da coreógrafa se faz presente em cada detalhe impregnado tanto nos gestos quanto na própria composição cênica que se expande desde o desenho espacial entre o corpo, o espaço físico e a luz, à sensibilidade presente na delicadeza dos movimentos. Esses movimentos conciliam forças antagônicas que exprimem da alegria à tristeza, da solidão ao estar junto, da presença à ausência, organizados em contrastes que fazem parte da existência, dos conflitos humanos.

Através do duo em cena, os bailarinos perpassam por essas sensações que vão sendo transformadas pela intensidade da luz e algumas variações de cor. Com a incidência do recurso de sombras e luzes, os intérpretes também compõem essa imagem que vai se transformando em função do que essas supostas cartas, que não estão presentes na cena, apenas no pretexto dramatúrgico, vão revelando.

Cabe dizer que Milhazes conciliou em sua obra a composição em diagonal, recurso do barroco que intensifica a sensação de profundidade. Tal estratégia transportada para a linguagem coreográfica, em diálogo com as luzes e sombras que vão acenando as intensidades, provoca um estado sublime que evoca algo sagrado, algo potente que se sustenta até sua desaparição. A cena inicial impacta com essa trajetória em diagonal, na direção do fundo. A bailarina em cena atravessa lentamente esse percurso, que parece distante, longínquo, quase sem limites. Flutua-se nessa amplitude de volume espacial que se projeta rumo ao infinito que não se enxerga. Essa mesma diagonal é retomada ao final, mas no sentido inverso, em que a bailarina atravessa do fundo para frente e sai da cena. Esse contorno, descrito corporalmente, é impelido pela força da profundidade espacial que pode remeter não só ao espaço, do perto ao longe, mas ao tempo, as dobras do tempo. O tempo presente, o tempo passado das memórias e as projeções do futuro. São dobras de si que condensam relações de afetos independente das distâncias e das temporalidades. São inscrições que arriscam subjetividades múltiplas.

Fotografia: Ana Clara Miranda
A dança entre o casal alterna momentos de solidão com momentos em que se compartilham a vivência a dois. Com estratégias coreográficas do contato corporal em duo ou da ausência deste contato, os intérpretes exalam as sensações do choro, da alegria, da compaixão, da angústia e permeiam os dramas existências. Ilustro, diante dessa reflexão escrita, as palavras do autor Roland Barthes, “CONTACTOS – a figura diz respeito a todo o discurso interior suscitado por um contato furtivo com o corpo (e mais precisamente com a pele) do ser desejado”. De maneira singela, Milhazes extrai situações do afeto sem ornamentos exteriores, nem mesmo as cartas estão em cena, pelo contrário, está tudo contido nos próprios corpos e potencializado pelo jogo das luzes, muito lúcida e assertiva.

É a exuberância do movimento que não se apega a formas, mas a sensações que provocam desenhos efêmeros que se dissolvem em paisagens estéticas, deixando rastros de impressões sensitivas. A obra passa longe do clichê seja das cartas, seja do amor ou seja dos dramas existenciais. Todos esses elementos são cuidadosamente articulados em cena transformando-se em delicadas naturalidades e, por isso, acessa o espectador de forma muito íntima e singular. O realismo traduzido no gesto ativa diretamente a cumplicidade do público que sente, de forma sensível, as fruições dissipadas pelos bailarinos guardadas no tempo de um espaço. Guarde-me é um apelo poético para o afeto do cuidado, do amor, independente do tempo e do espaço, que habita no próprio corpo, como memória viva ou como desejo de porvir.

SOBRE VOCÊ, EM MIM - Texto sobre o espetáculo “Já que sou, o jeito é ser” – Cia 5 - direção de Eduardo Ferreira e Angélica Evangelista

 por Carolina Natal
18/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 
Fotografia: Paulo Amaral

“Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser então.
Clarice Lispector

Já que sou, o jeito é ser é uma obra da Cia 5 que está em circulação e integra o Programa de Qualificação em Artes do Governo do Estado de São Paulo, com curadoria de Ismael Ivo. O trabalho propõe diversas linguagens artísticas tendo como pretexto as obras da escritora Clarice Lispector. Através dos corpos em cena, os intérpretes firmam relações entre a dança, o teatro e as artes visuais, propondo uma performance em que as pessoas passeiam pelo espaço, esbarrando-se nas imagens das escritas de Clarice, destilando o que há de mais banal e surpreendente nas narrativas da autora: o cotidiano.

O espaço proposto para a apresentação dessa obra foi a residência Olivo Gomes, projetada pelo arquiteto modernista Rino Levi, sediada no Parque Municipal Roberto Burle Marx, na cidade de São José dos Campos. É um patrimônio que recentemente abriu as portas para a cidade.

Inserida no Parque, construída de frente a um lago e rodeada de paisagem natural, a casa estabelece uma relação muito íntima com a natureza, através de suas paredes de vidros, que delimitam o espaço entre o dentro e o fora. Ou melhor, que tendem a não traçar essa fronteira e provocar a sensação de estar dentro, mas se sentindo fora, através da natureza que invade e amplia o espaço interno, desafiando a continuidade desses espaços que se conectam.

Para ter acesso a essa casa é necessário atravessar o parque. A caminhada noturna, escoltada pelo próprio público, aguça a curiosidade da dinâmica do próprio cotidiano dessa notável residência, que desperta algo imponente. 

As ações dos intérpretes estão espalhadas por cinco cômodos da casa, de forma simultânea e, em cada qual, uma transcrição cênica de Clarice associada às releituras de cada performer. Na sala, o primeiro ambiente da casa, sentimos a imponência desse espaço amplo que nos conecta com a natureza externa, através das grandes janelas em vidros. Um performer está ao chão, sobre um grande papel branco, onde traça imagens desse cotidiano, desenhando objetos do dia-a-dia e linhas abstratas. Ele rola e se gesticula nessa tela em que se desenha, brinca com o olhar que observa e imediatamente se transforma em traços. Reconstrói essa convivência passageira do cotidiano, rodeada de público, e desenha também no espaço, compondo linhas imaginárias que flutuam. Gesticula-se concentrando na relação entre as imagens desenhadas provindas do contexto da escritora, sobrepondo-se à realidade que se apresenta a partir desses observadores que o rodeiam. É uma cena convidativa, que permite a intervenção do público sobre este tapete de papel.

Adentrando os outros cômodos da casa, há uma porta entreaberta com um performer que conversa com um espectador, frente à frente, separados por uma mesa. Olhando de fora, há a leitura de uma conversa banal, extratos de realidades íntimas que se compartilham, como uma cena de um filme, em que não há a necessidade de lançar o áudio, pois a cena à distância explica-se por ela mesma, basta observá-la...

Seguindo, depara-se com a representação da cena de uma galinha e seus ovos, no pequeno banheiro da casa. Essa imagem faz uma alusão imediata ao conto Uma Galinha da escritora. O performer aciona seu corpo, inserindo imagens das asas, do chocar, balbuciando sons típicos de uma galinha. A imagem da galinha, embora aparentemente ingênua, resgata o que há de mais cotidiano na nossa existência: os ciclos da vida. Nascimento, vida e morte, sendo reforçado pela presença do ovo, que simboliza renovação.

Fotografia: Paulo Amaral
O intérprete espreita o público com um olhar que se condensa em fragilidade, em força, em resistência, em desespero, em angústia. Todas essas sensações são projetadas pela própria imagem dessa galinha, que suplica para não virar uma iguaria a serviço do prazer alheio. Nada como o milagre do ovo, do nascimento, para sensibilizar as pessoas. No entanto, amanhã tudo volta ao normal...

Uma porta ao lado exibe o cartaz dessa imagem ao lado.  

De forma ambígua, esse quarto sugere o refúgio ao espaço íntimo, em que um expectador adentra e pode esquecer o mundo afora e ser ele próprio. Contudo, a proposta é fazê-lo diante de uma câmera assentada sobre um tripé. Trata-se de um observador oculto dotado de uma agilidade e uma potência incomparáveis, capazes de tornar essa intimidade aparente uma grande janela exposta ao mundo.

Por fim, chega-se ao último cômodo onde há a interferência da ação de uma mulher, que ocupa um quarto vazio e fala sozinha, por meio de seu corpo. Sua fala corporal conversa com suas roupas, que são retiradas e recolocadas, às vezes, inclusive com a ajuda de um espectador que, ao vesti-la, veste-se dela também, com um longo abraço. Veste-se ao avesso, veste-se as pernas nos braços. São metáforas de desorganizações emocionais que obrigam a continuidade, mesmo que inventando outras formas, mas que são possíveis. São pedaços dos amores e desamores e dos conflitos humanos. Nas palavras de Clarice: “...em mim mesma eu vi como é o inferno.”

Já que sou, o jeito é ser convida o público a presenciar cotidianos tão reais, tão onipresentes que tratam dos reflexos entre a arte e o apreciadorsobre você, em mim.


  

RUÍDOS DO CORPO - Texto sobre o espetáculo “APT” – concepção e performance: Talita Florêncio e Thiago Salas

 por Carolina Natal
17/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

A obra Apt, com performance e concepção de Talita Florêncio e Thiago Salas, propõe um espaço em que se interligam as ações entre corpo, som e objeto. Esses três elementos são somados à participação da tecnologia, que promove uma ponte fundamental entre essas relações.

Talita está sentada em uma cadeira e tem fixada ao seu corpo sensores, que são conectados por um fio ao computador de Thiago. Esses dois performers estabelecem uma parceria de ação e reação. O som tem uma particularidade eletrônica, soa como ruídos, com intensidades ora mais pesadas, ora mais leves, mas aparentemente abstrato. É um som que não tem a intenção de compor uma melodia, pelo contrário, ele produz uma sonoridade específica que só se faz alcançada diante desta relação.

Fotografia: Paulo Amaral

A intérprete se movimenta, sentada na cadeira, entrelaçada pelos fios conectados ao seu corpo. A composição da sonoridade se dá por este sensor que envia comandos de seu corpo ao computador. Ou seja, não é ela quem recebe informações que se traduzem em movimento. É o dispositivo que recebe as informações de seu corpo e repassa-as para o ambiente sonoro e este é moldado segundo seu movimento. Essa obra tem um caráter experimental, em que os performers lançam esses aparatos que produzem respostas e condicionam uma arte sonora. São ruídos do corpo que se projetam em forma de som.

A possibilidade coreográfica se constrói também pelo som que é produzido, como resposta ao corpo, provocando improvisos que fazem parte da partitura experimental do trabalho.

Fotografia: Paulo Amaral
Talita retira esses sensores conectados ao seu corpo e se relaciona, então, com uma sucata, um objeto circular em que ela vai moldando, inserindo-se, atravessando-se nele. Este objeto também está conectado ao computador e emite um som. Ela manipula esse objeto utilizando-se uma tensão corporal para modificar sua forma. Ao tocá-lo ou tocá-lo no chão, essa sucata se amplia pela sensação sonora. O ruído emitido desse objeto remete a um corpo pesado, um gigante. E esse som que se reproduz de forma tecnológica repercute na próxima movimentação gerada pelo corpo da intérprete.

Apt é um experimento interferência que não se resume a produzir efeitos sonoros a partir do movimento da bailarina, mas esse jogo se integra de tal forma que o movimento se afeta pelo som e vice-versa, de forma bem intimista, entre os performers. E, neste sentido, é possível que cada espetáculo tenha brechas para que novas percepções se integrem de forma a modificar, sutilmente, a estrutura prevista. Possíveis acasos podem produzir novas epifanias nesses ruídos do corpo, tanto em forma de som quanto de movimento.




FIOS QUE REGENERAM - Texto sobre o espetáculo “Embrio_linha_” – concepção, direção e coreografia de Maria Elvira Machado

 por Carolina Natal
17/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

Fotografia: Mariana Moraes

"Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei."
Manoel de Barros


Maria Elvira Machado traz à cena Embrio_linha_, sua pesquisa corporal fundada nos estudos da embriologia, que estuda a formação dos órgãos e sistemas a partir de uma célula. Aliada a essas referências, sua pesquisa transita entre as noções e sensações somáticas do corpo, que permitem ampliar não só a noção do movimento físico, mas o entender por meio da conexão entre corpo e mente.

Antes de acessar o espaço propriamente da cena, somos imersos em um ambiente que nos acolhe expondo o universo em que a intérprete transita em suas pesquisas. É uma instalação de livros que são o próprio suporte e eixo da sua construção cênica e para além dela. As referências variam de Peter Brook, Kazuo Ohno, Georgio Agambem, Didi-Huberman, Suely Rolnik, Bonnie Cohen e os clássicos Atlas de Anatomia entre tantos outros. Além dessa “ponte” através dos escritos, existem duas pessoas deitadas ao chão que são cuidadas por dois colaboradores do projeto. É uma experiência sensorial que convida o público a sentir, a perceber, a observar.

Na cena, e espaço é compartilhado entre a intérprete e diretora Maria Elvira Machado, o músico que propaga o som ao vivo e alguns artistas colaboradores locais, da cidade, que participaram de seu workshop e se disponibilizaram para a cena do espetáculo.

Fotografia: Carolina Natal
Maria Elvira e os artistas colaboradores estão cuidadosamente enrolando um pedaço de papel com linhas de costura, como membranas, que são distribuídas para algumas pessoas do público. Recebi essa “prenda” e desenrolei o fio. No pequeno papel:  “se levantar contra a gravidade”. Guardei essa informação.

Maria Elvira inicia com três colaboradores em cena. Harmonizam-se num fluxo de intensões, ritmos e organizações corporais. São corpos que propõem um sistema de relações como organismos unicelulares que se arranjam em tecidos. 

Eles saem de cena e Maria Elvira coloca um carretel de linhas em sua boca, como se o engolisse, e se despe, ocupando um canto do palco. De costas, nua, ela risca seu corpo em linhas contínuas como se estivesse traçando os caminhos das células, mobilizando o que há de invisível, de micro, de imperceptível. Há uma possível leitura de regressão ao estágio embrionário, momento das primeiras modificações do óvulo fecundado, que vai dar origem ao indivíduo adulto.

Ao mesmo tempo em que ela traça esses caminhos corporais na própria pele, tatuando-se do que pertence a si, do que faz parte de uma memória corporal, há a projeção de um vídeo que reforça as mesmas imagens que são produzidas por seu corpo em cena. No entanto, essa projeção não é em tempo real e as imagens ressoam como ecos que se multiplicam como mitoses. De forma muito poética, essa nudez explicita esses caminhos como materialização de possibilidades de reconhecer no corpo seu próprio eu, sua origem, seus sistemas e suas trajetórias que contemplam o que se é hoje.

Essa projeção amplia o olhar e a sensação ao focar todos os cantos do corpo pelo qual Maria Elvira retorna e que, ao vivo, às vezes não conseguimos captar as passagens entre as curvas e os detalhes. Somos transportados para perceber a pele e, implícita a ela, o sistema esquelético, o sistema orgânico, o sistema muscular, os ligamentos, os fluídos, o sistema endócrino e o sistema nervoso. Todos esses sistemas estão ligados aos estudos somáticos do corpo e, mais especificamente, o Método Body-Mind Centering.

Durante essa projeção, existe o som off da imagem que é a voz da própria intérprete que vai estendendo o movimento em diálogo com essa fala, com a finalidade de compartilhar com o público sua pesquisa. Sua voz soa, como diria Manoel de Barros: “A voz de um passarinho me recita”. Através da voz da intérprete, "recitam-se" sensações, percepções, estados de atenção, associações, absorções. No vídeo, inclusive, existe a edição desses traços, a imagem retorna e o traço se apaga, pronto para se regenerar. É uma composição que se faz e se refaz o tempo todo.  O público recebe essa história e tenta passear, imaginariamente no seu próprio corpo, sob o comando dessas linhas. Além das questões mais físicas, lê-se também nessa obra um retorno a si que também provoca uma investigação inquieta com questionamentos sobre quem somos, como nos formamos e que corpo é esse.

A intérprete veste-se de camadas de roupas, cobrindo sua pele e seus traços, como camadas de sistemas que vão sendo preenchidas, habitadas ou expressadas. Maria Elvira vai retirando a linha que reservou em sua boca, no carretel. Ela desenrola e puxa o longo fio que vai saindo de si, como se fosse um cordão umbilical, subentendendo-se a ideia de externar e trazer à tona as imagens que pertencem à formação do indivíduo e à composição dos sistemas do corpo.

Maria Elvira simboliza, através desse fio, algo que se desenrola de si como se fosse inerente ao seu corpo, como se a potência dessas percepções transbordasse seu corpo e, a partir daí, acessa-se os ligamentos, as transições entre os ossos, o fluxo do fluido que mobilizará diferentes áreas, as glândulas individuais do corpo, a regulação das diversas funções corporais e tantos outros sistemas. Sua dança interliga essa pesquisa e amplia seu corpo, não só de movimentos, como de relações.

Ela finaliza juntamente com os artistas colaboradores que retornam ao palco com uma linha de tricô e eles vão enrolando seu corpo com essa nova membrana. Um outro ligamento ou tecido regenerado que será explorado pelo movimento, pelo gesto, pela sensação e pela dança.  

Embrio_linha_ é como um fio de Ariadne, que possibilita regressar a algum local já habitado anteriormente, através das pistas, dos fios e das linhas que funcionam como marcas, como registros que possibilitam o retorno a eles. Uma possível leitura que nos lança a incansáveis e necessárias regenerações, tanto físicas quanto emocionais.


Narrativas editadas - Texto sobre o espetáculo “Devolve 2 horas da minha vida” – direção de Alex Soares

 por Carolina Natal
16/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

A intertextualidade entre um filme, Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock, a dramaturgia da dança e questões de arte-tecnologia são as marcas da obra Devolve 2 horas da minha vida, dirigida por Alex Soares. Esse trabalho lança um olhar crítico, e às vezes satírico, a respeito da relação com que as pessoas têm estabelecido com o excesso de tecnologia, sobretudo, o uso do celular.

Janela Indiscreta é um filme (1954) em que Hitchcock trata da vigilância da vida alheia a partir da janela de um apartamento. Desta janela, o ator do filme, com seu binóculo, passeia por diversas intimidades e, a partir das imagens que consegue observar, constrói narrativas. Essas narrativas produzidas por essas imagens são praticamente “editadas” segundo a ficção que convém ao mapeamento de quem recria essa história.

Transpondo essa ideia para o corpo, através da dança, Soares criou um aplicativo para ser usado ao vivo durante o espetáculo. Esse aplicativo caracteriza uma estética da imersão, em que o público participa da obra em tempo real. Tal recurso faz desse espetáculo uma obra interativa, propondo e convidando o público a reagir via esse recurso tecnológico.

As inversões e estranhamentos iniciam já com os três sinais que precedem o espetáculo. O som habitual da campainha fora substituído pelo som de alerta de mensagem do celular. O que já inverte a ordem habitual das coisas é justamente a possibilidade desse som ser ecoado dentro de um Teatro. Por conta disso, na plateia, existe uma agitação incomum, fruto da curiosidade de como manipular esse aplicativo, normalmente proibido nesse ambiente e, justamente, como ele será usado em cena.

No palco, uma grande estrutura quadrada, branca. Nas laterais, cadeiras para o público. As orientações iniciais habituais do Teatro já fazem parte da obra. Projeta-se, sobre a estrutura quadrada que se encontra no palco, a moldura de um celular e, dentro dele, está o intérprete, que vai se encaixando conforme o molde muda de posição. As orientações são avessas: não desliguem o celular, tire selfies, permaneçam conectados...

Essa possiblidade de interação remete a um ambiente de jogos virtuais, como se a cena fosse uma plataforma aberta para dialogar e receber os estímulos. Neste caso, a interação do público não chega a modificar a obra, mas incita o espectador a transitar pela obsessão virtual, quase uma condição de pertencimento.

As imagens projetadas, no início, fazem alusão à obra Janela Indiscreta, acrescidas da atualização encenada pelos intérpretes nessas janelas virtuais. Nesse momento, a ideia dessa projeção ressoa sobre o próprio público, como se eles fossem os próprios voyeurs da vida alheia.

Os desenhos de luz impressos no chão possibilitam a leitura da planta de um apartamento, ou de um espaço outro. As diversas cenas que se passam no palco são como janelas de realidades que são bisbilhotadas pelo público.

O espetáculo reforça, variando o lúdico com o drama, situações que beiram o absurdo. Tornam-se cômicas com doses trágicas. Além do público acompanhar as cenas ao vivo, o aplicativo envia mensagens sinalizando intervenções a serem feitas: enviar fotos para um fulano, pausa para selfies, abrir blackout, chamar pelo garçom, entre outras....

Na verdade, essas possibilidades encadeiam ações que extrapolam a cena no palco. Elas “incomodam” propositalmente o espectador criando mais dispersões e comandos. A reflexão que se instaura é o próprio uso abusivo desses comandos, que são gerados excessivamente na vida real e que se desdobram em variadas funções.

O palco torna-se uma metáfora da ampliação de cada janela. Uma mulher dança ao som de um piano ao vivo, como se sua vida estivesse aberta para ser observada. Seus movimentos escancaram uma bebedeira emocional, um desequilíbrio que se expande em seu riso descontrolado. Riso em movimentos que provocam uma dança que tem um contorno estético exposto na qualidade de cada surto gestual. Em seguida, um rapaz insere-se ao movimento e a cena vai exibindo um conflito que se expressa nos abraços que grudam, desgrudam e novamente grudam, como uma dependência mútua, uma perseguição de afetos.

Outra cena trata da mulher que está sendo praticamente abusada por dois homens. Ela paralisa a cena e reorganiza, ditando os comandos de sua edição conforme suas intenções espetacularizadas. São diversos pontos de reflexão sutilmente lançados nesta pausa, aparentemente lúdica:  a edição do que realmente é; do que pretende ser mostrado; como se pretende ser visto e qual a expectativa esperada em função dessa imagem.



Essas pausas dos selfies são paródias da realidade, sátiras da exposição diária que fazemos de nossas vidas, quando compactuamos em compartilhar cenas das mais banais às mais íntimas em redes sociais. Tornamo-nos espiões e somos espionados. Vigiamos e somos vigiados. Mas, diferente da realidade, podemos editar essas imagens e construir novas narrativas, propor novos modos de existência e confundir-se a elas.

Modelam-se consciências ilusórias e a vida dos outros passa a ser vista/observada/seguida/ segundo as edições do que se vê e do que se quer que seja visto. São contradições que emanam criatividade, tempo e dedicação. Em outras palavras, perde-se tempo para construir uma imagem. Refazer, então, requer mais e mais.

Ao final, os comandos do aplicativo convidam o público a experimentarem os óculos 360º. Os espectadores que subiram ao palco inserem seus celulares nesses óculos de papelão e saem caminhando lentamente pelo palco. Esses óculos são outras janelas que se abrem e é permitido somente a esses usuários que acionaram o aplicativo para terem essa outra perspectiva voyeurista. Quando se percebe, os bailarinos já não estão mais em cena, saíram atravessando o público, fizeram selfies do grupo e deixaram as pessoas “confinadas” nesse ambiente ora virtual, ora real. Tornamo-nos marionetes vulneráveis à espera do controle virtual sinalizando direções e reações. Nossos sentidos ficam bitolados nesse jogo de realidades inventadas, que fazem-nos sentir perdidos na ausência deste.

No palco, além dos usuários que estão em cena, foi deixado um manequim, um boneco, no chão, vestido com uma camisa com estampa do código em barras, que exige o aplicativo para ser lido e reconhecido. Levantei-me para identificar o próximo comando que restava ao público. Várias pessoas se aglomeraram ao redor desse corpo-boneco para descobrirem pistas do que se fazer. Era o comando que indicava uma ação de forma explícita.... Em seguida, o público aplaudiu!




A RUA COMO ELA É - Texto sobre o espetáculo “Ruas” – Companhia o Clã da Dança

por Carolina Natal
16/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 


Prelúdio - Um Conto Urbano: “A rua com ela é”

São Francisco Xavier. Uma igreja. Muitas montanhas. Uma praça. Demarcação no chão, ao centro da praça, simbolizando um palco. Pessoas ao redor. Turistas, vizinhos, moradores. Cachorros. Bêbados. Crianças. Pássaros. Ruídos. Falas. Conversas íntimas, não mais íntimas. Risos. Cerveja. Carros. Ônibus e Ponto de ônibus. Danças urbanas. Experimentação do palco. Movimentos. 2 bailarinos. Um bêbado. Vários cachorros. Bailarinos X bêbado. Bêbado rouba a cena. Bêbado dança, imita o bailarino, improvisa na ginga, desequilibra, cai, levanta, luta sem contato. Risos da plateia. Luta com contato. Senhor local interfere. Fim do conto urbano.

***
Fotografia: Elisa Nogueira

Imersos já nas tensões inerentes ao contexto da rua, a Companhia o Clã da Dança, dirigida por Mônica Alvarenga, inicia a interferência urbana com sua obra “Ruas”. Vestidos de cinza e preto, cada qual com um corte de roupa diferente do outro, ocupam essa praça tornando esse espaço cênico, ao centro, o local da apreciação.

A obra apresenta um breve recorte, pois ainda está em processo de criação, e parte de uma pesquisa corporal da Companhia foi realizada nas ruas atenta aos gestos, deslocamentos, imagens, movimentos, olhares, relações, não-relações. Essa observação teve também como eixo a linguagem corporal do Tai Chi Chuan, que conecta a natureza e o meio ambiente. A Cia habita esse espaço aberto reproduzindo essas conexões que refletem a própria realidade. O som parece ter toque de sinos, que podem pontuar ritmos, sejam eles externos ou internos. Um mantra.

A presença do Tai Chi Chuan entra como pretexto, como um alinhavar dos movimentos corporais cotidianos, folclóricos e urbanos propostos pela Cia. A diversidade da rua é contemplada pela pluralidade inventiva em seus próprios corpos.

O ritmo urbano se amacia com instantes de quietude corporal. São pausas que acolhem e silenciam não só o corpo que se move, mas o público, o qual é interpelado momentaneamente pela ausência, quase um mistério que se gesticula na pausa.

A metáfora do mistério considera a relação entre o corpo e a natureza. Entre a percepção e a realidade. Entre a criação e a ilusão. São como segredos que não são ditos pelas palavras, mas escapam nos gestos, nas ações. Ruas faz uma interferência urbana, mas mantém a tradicionalidade do palco italiano. Promove um contato com o público ao aproximarem-se dele e propor uma interação. Recriam as posturas, gestos e movimentos do espectador. Compartilham os segredos corporais através da proximidade física, que pode causar o estranhamento por parte de algum espectador. Mas isso pertence ao mundo da rua...

Nas ruas, as pessoas esbarram-se, desviam-se, apressam-se, às vezes sentem-se perdidas.

A Cia apresenta uma organização urbana com diversidades de movimentos. Entre caminhadas, surgem passos folclóricos e até a lança do maracatu rural, toda colorida. O bailarino compõe seu gestual urbano com inserções populares.

Fotografia: Elisa Nogueira
Finalizam com movimentos pendulares, aos poucos silenciando os corpos e magnetizando as pessoas. Suas presenças captaram a atenção do público, mas a rua é dotada de imprevisibilidades, de ruídos, de situações que podem ser inconvenientes ou desorganizadoras. É um espaço democrático, podendo também cumprir o papel de ser o palco da discordância, da luta, da resistência. Neste espetáculo a obra não foi atravessada por intervenções externas, apenas o prelúdio, o antes do início. No entanto, outros formatos dessa obra poderão existir para abrigar e agregar possíveis rupturas urbanas, assim como o improviso da vida como ela é.







Texto sobre o filme “AS CINZAS DE DEUS”

 por Carolina Natal
15/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 




Metamorfoses, de Ovídio, é o tema inspirador da obra Cinzas de Deus (2003), um longa experimental que dialoga com a dança na imagem em movimento, dirigido por André Semenza, com a Cia Zikzira criada e dirigida por Fernanda Lippi.

Cinzas de Deus é uma adaptação da primeira parte de Metamorfoses. A dramaturgia do filme é delineada pela trajetória da personagem Helô, uma mulher que se encontra com outras personagens, misturando sonho e realidade.

A estética do filme retrata espaços que provavelmente foram habitados um dia, mas atualmente se encontram vazios, abandonados pelo tempo, pela ausência de sentidos. No filme, só existem as personagens que são presentes na obra. Não existe nenhuma presença física, outra, que não seja a de um bailarino que está imerso em sua composição coreográfica. A ocupação desses bailarinos nos diferentes espaços, que possuem como denominador comum a ideia do abandono e da solidão, é o que faz reavivar não só os espaços físicos adormecidos, como também os próprios corpos.

Metamorfoses, de uma forma literal, trata da transformação do homem em animais, em plantas e minerais. Resgatando essas intenções primeiras para o contexto do filme, pode-se ampliar essas imagens para um estado corporal que se proponha a alterações e variações, em forma de dança, que são provocados por essa imersão nesses espaços físicos e emocionais.

São corpos que, lentamente, vão tentando transformar-se em função do ambiente em que estão. Ambiente sombrio, lúgubre, no entanto, cobertos pela poesia de capturar e redefinir novas sensações que se alteram de acordo com as corporeidades que são provocadas por cada um. Os corpos iniciam deitados ao chão, enraizados, debruçados sobre a terra, elemento que também se conecta à natureza e aos seres mitológicos. Suas vestimentas e o próprio espaço são rodeados da cor terra, ora mais avermelhadas, ora mais ofuscadas. Seus corpos confundem-se ao próprio espaço: a terra e a natureza.

Cada corpo vai construindo sua corporeidade conectada a esses espaços. Cada um encontra sua forma de se expressar, de dialogar, de habitar cada canto. Cada corpo se move tentando encontrar um novo eixo, um riso corporal que balança os corpos e provoca uma tonicidade contorcida. Poeiras sobressaem do chão, da própria terra, de acordo com a intensidade dos movimentos que espalham a noção do próprio espaço.

O filme não tem uma preocupação em contar uma história linear e nem apontar planos que construam continuidades de cena, pelo contrário, ele é organizado de forma a enlaçar uma coerência que se dá por construções de diferentes personagens, cada qual com seu tempo, cada qual habitando um espaço e, às vezes, os mesmos. Devido à estruturação cinematográfica, que permite a ideia do tempo síncrono, as imagens passeiam para diversos lugares, mas podem ser lidas com a possibilidade de serem todas simultâneas.

O recurso do cinema, facilita, ainda, neste caso, a mistura entre o sonho e a realidade, pois um plano pode dar sequência a outro, como se fosse um dispositivo de retorno ao tempo, às memórias. Isso dá unidade à obra, pois não se distingue o que é sonho do que é realidade. Ambos caminham juntos, tentando construir novos tempos de presença que reforçam a expressividade de corpos que evocam e gritam silenciosamente por recomeços, como um renascer.

Enquanto os intérpretes vão acessando seus gestuais, transformados pelo próprio espaço e pela experiência dessa conexão, que abriga também a ideia de corpos frágeis, o exercício da câmera, que capta as imagens, contrapõe-se a essa imprecisão de movimentos que é inerente a esse processo de metamorfose. A câmera detém uma precisão clássica sobre cada posição de câmera, sobre cada ângulo e sobre cada foco. Não hesita, não vacila. A câmera mostra-se interessada naquilo que ela pretende ver, sem rodeios. Essa captação certeira, exata, permite ao espectador adentrar nessa construção cenográfica que, embora taciturna, revela a delicadeza e a essência de cada tijolo da parede desgastado pelo tempo, de cada musgo impregnando o muro e de como esses intérpretes vão iluminando seus próprios corpos e tornando esse espaço um agregado. Um agregado que permite, em função do vazio e do silêncio que ele propõe, ser moldado pelos intérpretes. É um espaço do corpo ou o corpo do espaço que a imagem atravessa com propriedade.

É bastante evidente que o diretor da obra não utiliza os recursos da imagem para criar outra coreografia a partir da edição, como o poderia fazer. Pelo contrário, ele opta por manter a inserção da câmera como um aliado lúcido que permite ao espectador inserir-se em todos os ambientes, visitando-os, percebendo-os, acessando o espaço de forma tão íntima como a câmera o faz. Se os espaços pensam em provocar algum estranhamento ao público, a câmera se ocupa em conduzi-los.

A relação estabelecida entre o espaço-corpo-imagem comporta preciosos momentos, imagens de pensamentos que se alternam entre os recortes de corpos, com corpos entre as janelas vistas de fora, por detrás de galhos de árvores, submersos na terra apenas com os braços de fora; com os corpos em plano geral, na íntegra, arrebatados das terras, das cinzas, transformados pela experimentação espacial, pela relação estabelecida entre os bailarinos, pela composição coreográfica de cada um, e pelo olhar da câmera. Esta última, dirige nossos olhares, conduzindo-nos a articular os sentidos, a apreciar e extrair as sensações e as poesias, presentes tanto na estética da imposição da beleza quanto na estética do não belo.  

As giras da diversidade - Texto sobre o espetáculo “Quero ser preto” – uma coprodução entre o Núcleo Arcênico, Cia Azul Celeste e Casa de Criar.

 por Carolina Natal
14/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 


 Fotografia: Paulo Amaral
                                         
Através de diversas simbologias e imagens sagradas, construídas no próprio corpo e no movimento, a obra Quero ser preto mistura diversas linguagens artísticas presentes na dança, no teatro, nas artes visuais e na performance. De forma integrada, o diretor e roteirista Jorge Vermelho enlaça uma trajetória que parte de onde tudo começou: Gênesis.

Gênesis refere-se à História da Criação, um livro bíblico, que trata do princípio e da origem do mundo criado por Deus. Com três intérpretes em cena, esses corpos discutem, ao longo da dramaturgia do espetáculo, uma profunda relação existente entre o preconceito que se revela, ao mesmo tempo em que se oculta, nas religiões, na cultura, na raça e no gênero.

Com sutis movimentos, o espetáculo inicia com uma leitura corporal oriunda da Umbanda, que é uma religião brasileira que abriga referências africanas, cristãs e indígenas. Impregnados das imagens dos orixás africanos, os intérpretes abrigam o mundo, a partir dessas referências, e lançam movimentos de Ogum, Odé, Oxum. Ao fundo, são projetadas diferentes cores, como longas faixas, que também dialogam com esses orixás. Seus gestos, embora suaves, expõem a precisão de cada significado: espadas, arco e flecha, águas e espelhos imaginários. Essas referências gestuais trazem, intrínsecos a si, imagens de guerreiros, de caçadores, de simbologias de purificações, entre tantos outros movimentos que permitem escapar outras imagens referentes a outros orixás.

Ao final dessa profusão de gestuais, que comportam tradições e crenças, projeta-se a imagem “A Criação de Adão”, de Michelangelo que, segundo o Gênesis, é a criação do primeiro homem: Adão. E, metaforicamente, criou-se o mundo.

 Fotografia: Paulo Amaral
A partir de rituais, em que o corpo se torna disponível para receber as forças, os bailarinos evocam guias e protetores. É no terreiro que se vivenciam as festividades, as celebrações e devoções. A cena ocupa-se de entidades, como pretos velhos e crianças. Na criança, inclusive, além da veste rosa e da coroa de princesa, o trabalho artístico insere, ainda, a imagem da bailarina clássica, com pontas nos pés. Uma  suposta alusão a algum contraste ou conflito. Ao mesmo tempo, um intérprete desenha na cortina branca de papel, ao fundo, traçando diagramas, desenhos ondulados, são os pontos riscados, que também acompanham e caracterizam os rituais, assim como as giras, que trazem o movimento circular, no próprio eixo ou deslocando-se.

Esses papéis em forma de cortina, que foram desenhados os tais pontos riscados, são retirados da função cortina e amassados ao chão. Em seguida, os intérpretes vestem-se desses papéis e compõem trajes diversos no corpo, por ora turbantes, por ora saiões, como se acessassem uma memória suntuosa, pomposa, luxuosa, desfilando sua identidade, confirmando seu pertencimento. Esse visual se contrapõe imediatamente à letra da música de Elza Soares, A Carne, e os bailarinos incorporam essa sinestesia provocada pela reflexão desse contraste visual com o sonoro.

Nessa plataforma chamada terreiro, em que coabita e interliga o ancestral ao presente, como espaços que se condensam e se dobram juntos, a ideia do terreiro se amplia para trazer embates e resistência ao que se marginaliza na sociedade atual. São como as heterotopias que, segundo o escritor Michel Foucault, designam os espaços outros.  O escritor pensa o espaço como relação de poder. É como se esses espaços outros fossem ocupados e representados pelos marginalizados, não aceitos, desviados. São os espaços de conflito. Essa obra artística utiliza alguns ícones religiosos, como símbolos e representações, os quais repercutem ressonâncias que extrapolam ao específico terreiro da Umbanda. A Umbanda é apenas uma via, uma forma, mas que possibilita desdobramentos universais conectados e dialogados com as questões contemporâneas, atuais.


 Fotografia: Paulo Amaral
Em alguns momentos, a obra dialoga com as imagens projetadas em tempo real, do próprio espetáculo, como ampliação das imagens ao vivo, que são captadas em cena, por um dos intérpretes. Com a câmera na mão, a imagem que se projeta traz uma percepção, às vezes, trêmula, que convida à leitura do frágil e do efêmero.

“Quero ser preto” ressalta o compromisso entre o sagrado e a memória afetiva, através dos orixás e entidades, elaborando um gestual que se direciona para o percurso interior, sensível, inundado de ancestrais como um inconsciente coletivo e individual. A cena final se constrói a partir de várias imagens projetadas, que vão se justapondo umas às outras, de diversas formas de dança, de expressão, através de giros. O giro da bailarina clássica, o giro de cabeça no chão do hip hop, o giro da mulher maravilha. São muitas as formas de giros que, nesse contexto, dialogam com a gira da umbanda, pela intérprete em cena. Todos elas coabitam o mesmo espaço. Todos elas existem e se fazem existir. Todas podem conviver.

A gira final expressa-se no movimento de um bailarino que, com roupas prateadas, insere-se ao centro do palco e gira, lentamente, gira, gira, gira....  Outro bailarino se aproxima e vai espirrando spray preto sobre seu rosto e seu corpo. Sublime imagem que se transforma diante do público. Quero ser preto torna-se um local que não só abriga, mas expõem os vários preconceitos que se traduzem de várias formas. A cor é apenas uma delas. 

POLIFONIA DE CORPOS - Texto sobre o espetáculo “Fluxos” – Grupo Sala B

 por Carolina Natal
12/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

Fluxos é uma obra coreográfica desenvolvida pelo grupo Sala B, dirigido por Fernando de Castro e sediado na cidade de Belo Horizonte, que trata sobre a investigação do cotidiano no ambiente urbano. A composição do espaço é parte fundamental para estabelecer a relação entre os bailarinos e perceber como esse vínculo se multiplica em interações, que direcionam para as conexões urbanas.

O espaço cenográfico é composto pela junção de três elementos: uma cortina que se estende ao fundo, como longas faixas de PVC em preto com um espaço, restrito e demarcado, em branco, simbolizando um espaço de passagem; dois longos tapetes que atravessam o palco, como passarelas; e o recorte da luz, que se organiza de forma precisa e geométrica, como corredores.

 Fotografia: Paulo Amaral

Os bailarinos, ordenadamente, dispõem-se ao longo da demarcação desse chão, percorrendo esses dois tapetes paralelos, como se estivessem ocupando as calçadas de uma rua. De maneira apática, esses bailarinos atravessam o palco inicialmente caminhando, como transeuntes que praticamente nem se percebem. Depois vão mudando e variando ritmos pessoais. Uns param, outros seguem, uns caem, outros... nem percebem. Essa insistente passagem, que se torna repetitiva para reforçar sistemas de representação de modos de vida das cidades, traduz o espaço também como experiência de corpo.

O grupo Sala B propõe um gestual da técnica clássica, simultaneamente explorando a dança contemporânea alinhando-se a geometrias corporais, ângulos e trajetórias precisas, que potencializam a ideia desta mobilidade urbana. Ações banais do ato de correr contribuem para estereotipar a ocupação desse “não-lugar” que, segundo o escritor Marc Augé, caracteriza-se pelo espaço não personalizado, pelo espaço de rápida circulação e que não cria vínculos, relações ou afetos. Correm sem sair do lugar. Correm até não alcançar. Correm sem perceber. Correm para não parar.

É uma polifonia de corpos que gera o caos, que se oculta de forma organizada, alinhada, adestrada. A ideia dessa ocupação linear vai se tornando tão insensata que, de repente, os bailarinos atravessam o palco carregando as bailarinas suspensas, na horizontal, eretas, como se fossem objetos, cones, ou qualquer material insignificante. Aliás, qualquer coisa, menos um corpo, que se traduza em um ser humano. O espetáculo vai provocando risos, que são frutos da própria ironia que essas cenas desafiam o espectador.

 Fotografia: Paulo Amaral
Abre-se um novo elemento no espaço. Outro corredor, que sai da cortina ao fundo, em branco, e segue até a boca de cena. Essa nova demarcação rompe as passagens paralelas já existentes e desorganiza a geometria proposta até então. Agora os espaços se cruzam, podendo abrir possibilidades de interação. Nesse novo itinerário, os bailarinos se alinham e caminham, juntos, em direção ao público. Seus olhares fincam no horizonte, fortes e fixos. Dançam nesse recorte espacial e inicia-se a sensação de existência de afetos, talvez pela proximidade dos corpos, talvez pela junção do grupo. Ao finalizar uma das músicas, somos surpreendidos pelo som de palmas. Essas palmas, que fazem parte da sonoplastia do espetáculo, incitam uma perspectiva dos intérpretes estarem sendo observados, sendo apreciados, ou mesmo, vigiados? 

Essas provocações cênicas dão a tônica da obra Fluxos, que ao mesmo tempo em que se aparenta ter uma estética que remete a uma regularidade de movimentos e de trajetórias, momentaneamente elas rompem esse alinhamento e escapam, originando a invenção de um outro cotidiano: fraturam continuidades de expectativas e promovem sutis inversões, através de movimentos e situações irônicas que roubam discretos risos do público.   



Os cantos do corpo: um mundo - Texto sobre o espetáculo “Espaço Interior” - Espaço E. Cia de Dança

por Carolina Natal
12/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 
“Tato...
mas o tato me dá a consistente realidade
 de minha presença no mundo” 
(Ferreira Gullar)

A obra Espaço Interior da coreógrafa Layla Mulinari expande-se através da pesquisa da Eutonia. A Eutonia foi criada por Gerda Alexander (1908-1994) com o intuito de reeducar o movimento, ampliando-os para além da imitação e dos gestos estereotipados. A finalidade dessa prática é permitir que o aluno tenha autonomia para perceber seu próprio corpo e propor movimentos que sejam construídos a partir da relação com o tônus. O tônus corporal regula o corpo não só em movimento, como também no repouso. A organização anatômica, a postura, o sistema nervoso, entre outros, é interferido pela noção do tônus. E, além dessas impressões concretas, o tônus é atravessado pelos pensamentos, pelas emoções, pelas sensações, portanto, ele abrange funções que, às vezes, vão além da capacidade do corpo identificar e tentar ajustar, corrigir, soltar, ceder, acionar...

Nesse contexto, a obra propõe uma revelação do mundo interior das pessoas, através dos intérpretes. Uma espécie de encontro com seu próprio corpo que vai, progressivamente, ativando camadas e mais camadas, liberando as tensões e rasgando o caminho do movimento que vai adquirindo mais qualidade, mais consciência e, naturalmente, acessa uma essência. Essa essência se constrói alinhada à própria pedagogia da Eutonia, que se propõe a pesquisar: a pele, os ossos, o contato, o espaço interior e o transporte, que está ligado ao apoio.

O trabalho inicia com os intérpretes mobilizando, de forma individual, seu corpo, através de seus movimentos. Todos vestidos de branco, luz clara, um espaço que traz a sensação de clareza, de transparência, de amplidão. Esses corpos vão, lentamente, alinhando e organizando os ossos, através da estética de um movimento que perpassa a sensação. Toda essa percepção individual se dá pela expressividade da dança de cada um, que às vezes, coreograficamente essa sensação deixa de ser individual e se conecta com outro. Essa dinâmica entre o movimento individual e o movimento coletivo se retoma o tempo todo durante o espetáculo. São ligas que momentaneamente por ora se conectam entre eles, por ora se conectam entre si. No entanto, mesmo a aparente desconexão está ligada a uma unicidade que pulsa como um todo.

O silêncio também invade a cena, em alguns momentos. É um silêncio necessário que designa o contato consigo, designa o movimento que escapa independente do ritmo que se estabelece no exterior, designa reconhecer-se no próprio abrigo.

Gaston Bachelard, em seu livro “A poética do espaço”, propõe uma reflexão acerca dos diversos espaços, fazendo uma analogia com as imagens que se desdobram da casa. A casa, como um símbolo, abriga o universo das pessoas. Nesse sentido, é como se o espetáculo fosse revirando, delicadamente, e acessando cada canto do corpo, da sua própria casa. O ninho, que normalmente simboliza o descanso tranquilizador. As gavetas, que condensam memórias, objetos, roupas. Os cofres, que escondem o que se pretende zelar, proteger. Os cantos, que normalmente são espaços reduzidos que gostamos de esconder. São nesses cantos que se escondem a solidão, a escuridão e, às vezes, um refúgio de imobilidade.

Os bailarinos não param de buscar esses espaços e até esses cantos do corpo, que normalmente insistem em se esconder e, metaforicamente, são acionados e revelam nada mais nada menos que seu próprio universo. As miniaturas presentes na casa exigem cuidados, por serem tão pequenas, e são como os movimentos mínimos, que expõem detalhes fundamentais para os retalhos do todo. Essa imagem da casa é a própria imagem do corpo, de habitar o espaço em que se está. A coreografia expõe a “casa” de cada um como uma imensidão íntima.

Ao longo do espetáculo, os bailarinos vão se despindo da roupa branca e se vestem de cores, de outros tecidos, de novos cortes que moldam praticamente outra pele, que está cada vez mais apta e conectada com seu próprio eu. O espaço interno e o volume do corpo se ampliam, possibilitando a entrada de outros corpos, para comporem sensações e movimentos juntos, através dos toques, dos apoios, do transporte do corpo sobre o outro.

A obra também possui uma dinâmica do fluxo respiratório, criando ritmos individuais, e da cumplicidade dos olhares entre os bailarinos que, de canto em canto, vão ocupando todos os espaços e habitando o todo, tanto do dentro quanto do fora. O movimento se expande entre o micro e o macro. Do sutil, o delicado e, às vezes, imperceptível, para todos os cantos do palco, do corpo, e das sensações que não se encerram apenas sobre a obra artística, mas que permanece nos nossos corpos, enquanto espectadores, que tentamos permanecer com o registro dessa fluidez e da sensação de que o corpo tem um mundo de possibilidades para se articular.

OHAD NAHARIN: A FORÇA EXPLOSIVA DO COLETIVO - Texto sobre o filme “GAGA: O AMOR PELA DANÇA”

por Carolina Natal
11/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

“Gaga: O amor pela dança” é um filme, dirigido por Tomer Heymann, sobre o renomado coreógrafo israelense Ohad Naharin, que reconta sua história e sua relação com a dança, expondo uma trajetória que permite ao espectador entender de que maneira o coreógrafo se viu impulsionado para construir sua base de pesquisa para a linguagem de movimento chamada Gaga, que ele desenvolveu.

Naharin cresceu numa comunidade Kibutz, onde as crianças conviviam a maior parte do tempo juntas, compartilhando seus afazeres no brincar, no banhar-se, no dormir. Tal referência e experiência de grupo e de comunidade tornou-se uma potencialidade e forte marca identitária nas obras de Naharin.


O israelense teve passagem no exército e, por conta de ter problemas físicos, serviu o exército apresentando dança de entretenimento aos soldados. Viveu o conflito do paradoxo entre as imagens da guerra, presenciadas e vistas com seus próprios olhos, e a distração em forma de dança. Tais contrastes provavelmente possibilitaram imagens corporais que foram desenvolvidas mais tarde, quando Naharin se lançou ao mundo profissional da dança.

Em seguida, viveu muitos anos nos Estados Unidos, onde fora recebido com muito entusiasmo por grandes coreógrafos, como Martha Graham e Maurice Béjart. Seu corpo trazia uma particularidade interpretativa que encantava e seduzia seus parceiros de trabalho. Foi fora de seu país, visto com um corpo exótico, que Naharin foi, aos poucos, encontrando sua identidade, a força de seu gesto. Sua movimentação conecta-se a uma força selvagem, uma brutalidade animal misturada com doses de delicadeza, forças femininas exaladas com tônica de agressividade. Contrastes que se fundem e que revelam propriedades particulares, inventivas, corporeidades flexíveis que vão traçando e fortalecendo uma experiência cênica.

A partir dessas descobertas, o israelense percebeu que não se encaixava em formatos de Companhias em que ele deveria repetir as composições coreográficas em que ele não acreditava, que não traziam sentido ao seu corpo. Assim, não se enquadrando nos formatos encontrados, o bailarino seguiu investigando suas potencialidades, criando grupos de trabalho, até que fora convidado a voltar ao seu país, mas dessa vez, para dirigir a Companhia Batsheva de Dança, instalada em Tel Aviv. O retorno ao seu país consagra a possibilidade de colocar em prática suas crenças, de ampliar seu repertório com um elenco que se configura como uma vitrine que representa sua pesquisa corporal.

Naharin preserva uma explosividade ambígua em seu corpo: ao mesmo tempo que consegue acessar uma estética de movimento em grupo, que encanta, que arrebata, pela força do coletivo que sugere essa expansão em metáforas de explosão; Naharin lança aquela explosividade latente que não se rebenta externamente aos olhos de quem aguarda a obviedade da expansão do movimento, mas, ao contrário, desafia seus bailarinos a acessarem a essência de tudo, no nada, na ausência do movimento, ou no movimento mais pormenorizado que seja. Esses contrastes harmonizam, de forma súbita e violenta, a exuberante composição gestual que é impregnada de emoção e sentimentos.

A linguagem Gaga surgiu quando Naharin se viu imobilizado corporalmente por conta de uma operação na coluna, em que ele acreditava que não conseguiria mais nem andar. Essa situação limite se identifica com a maneira clássica com que técnicas e linguagens de movimento sejam criadas, assim como o foi com a Técnica Alexander e a Eutonia.  Insistente, viu-se obrigado a reagir contra suas limitações e foi através da escuta e da própria percepção de si que o coreógrafo foi desenvolvendo o estudo do corpo, ampliando espaços corporais inexistentes e possibilitando a brecha de um movimento.

Gaga é uma experiência para todos os tipos de corpos. É uma estimulação corporal que possibilita que a dança aconteça no corpo, inclusive, acreditando ser uma possibilidade de cura. Um coletivo de movimentos que emana força, que vibra e amplia os espaços corporais através de uma busca sensitiva de movimentos. Naharin estimula ecos nos corpos, ecos em forma de movimento, os quais compõem texturas, acionam músculos e deixam a gravidade moldar.

Naharin coabita formas distintas de trabalho: ao mesmo tempo em que dirige a Cia Batsheva, exigindo a intensidade explosiva, seja nos mínimos movimentos ou mesmo na ausência destes, lapidando corpos incessantemente na repetição, na experimentação, nos detalhes de intenção; Naharin também tem a habilidade de agregar corpos não dançantes e compartilhar sua linguagem, Gaga, com dezenas de pessoas, acessando-as, através da sensação do movimento no corpo. Transitar entre esses diferentes lugares: da exigência de um diretor diante de uma Companhia de referência, para a dança como possibilidade para todos, é o que traz também a força de seu trabalho.

O filme pulsa, assim como a explosão da sua linguagem, Gaga, para o mundo. Gaga traduz o grande coletivo que habita em Naharin, como uma imagem que permanece viva e intensa de sua experiência no Kibutz.