Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP.
por Carolina Natal
08/06/2017
08/06/2017
“As danças não foram
criadas a partir da alegria, mas a partir de uma necessidade.”
Pina Bausch
O diretor e cineasta Wim Wenders
apostou em um documentário, lançado no ano de 2011 e originalmente em 3D, em
que os bailarinos da coreógrafa Pina Bausch (1940-2009) tentam contar, através
da fala e do movimento, como foram suas experiências com a coreógrafa. Pina
esteve à frente do Balé de Wuppertal desde 1973 e, desde então, desenvolveu sua
linguagem na dança a partir da dança-teatro. Para conseguir mergulhar no
universo de Bausch e sintonizar com suas obras, é importante trazer à luz a
própria memória corporal de Pina. Nascida durante a Segunda Guerra Mundial,
Pina cresceu num país destruído, que precisou se reconstruir, se reerguer. Suas
referências em dança seguem a linha alemã. Inicialmente com Rudolf Laban, que
se instalou no país e deu início ao termo dança-teatro e suas pesquisas.
Depois, a coreógrafa Mary Wigman, que buscava uma expressão individual com
questões universais. Seguem Kurt Joss, coreógrafo, e Bertold Brecht, dramaturgo:
ambos tratavam de temas sócio-políticos.
Nesse contexto, e diante de seus
antecessores que promoveram sua arte através de um desejo genuíno de
transformação, de diálogo com a realidade, seria impossível que Pina não
seguisse essa linha de formação. Diante disso, fica difícil falar de fábulas ou
de perfeições, tarefa que foi delegada à técnica clássica, que firmou sua
hegemonia durante séculos. Mas, a partir do século XX, a Dança Moderna
atravessa esse pensamento e abre outros leques permitindo que novas referências
e questionamentos perpassem pela criação da dança. E é alinhada a essas
questões que Pina entende a dança, lidando com os corpos que trazem suas
questões, suas complexidades, incompletudes e fragilidades.
O cineasta expõe a difícil tarefa
de falar de Pina na ausência dela. Para tal, Wenders experimenta, neste filme,
conjugar cenas das obras de Pina misturados aos depoimentos dos bailarinos e às
recriações de cenas que se transportam de seu lugar original, normalmente o
palco, atravessando a cidade, as ruas, os espaços públicos. Uma tentativa,
inclusive, de fazer da arte um objeto cotidiano, expandindo-se na naturalidade
do dia-a-dia das pessoas.
O filme inicia com uma fila de
bailarinos que, através da simplicidade de gestos que simbolizam as estações do
ano, desfilam no palco, repetindo fluidamente esses movimentos. Cada qual com
sua personagem, cada qual com seu estilo, cada qual com sua indagação. Essa
fila aparentemente harmoniza esses corpos que se encontram de certa forma
organizados, traçando uma trajetória de continuidade, uma trajetória cíclica,
bem como as estações do ano que se repetem incansavelmente. Wenders utiliza
essa caminhada como um recurso de fio condutor do próprio filme, que se retoma em determinado momento no meio
de escadarias e, ao final, sobre a montanha, no topo, configurando uma linda
cena poética que reflete a ideia de passagem, de continuidade e, paradoxalmente,
de não permanência. É curioso perceber que nessa passagem é como se os próprios bailarinos tornassem espectadores de si mesmo.
Da mesma forma que Bausch os
observava com tanta acuidade e dedicação, neste filme, Wenders utiliza o
recurso que é dado ao cinema, da possibilidade de refazer o tempo, de montá-lo,
de invertê-lo, de inventar sua própria temporalidade. As cenas em que os
bailarinos atravessam em fila, em diferentes pontos do filme, assemelha-se a um
momento de epifania, em que todo aparente caos da condição humana se harmoniza
momentaneamente, como uma foto, uma imagem que permanece registrada em nós.
Porém, essa suposta tranquilidade
irônica sempre retoma a intensidade da vibração das incessantes buscas
questionadas e estimuladas pela coreógrafa. Wenders articula os depoimentos de
cada bailarino, utilizando-se da voz off, em que a imagem permanece sobre o
intérprete, mas ele mantém-se em silêncio. Apenas sua voz sobressai, como um
pensamento íntimo que espontaneamente se compartilha. São vozes que ecoam da
maneira como cada qual refletia o universo de Bausch. São depoimentos ricos que
se comportam como retratos vivos que, saudosamente, reforçam a força das obras
da coreógrafa, presentes em cada um deles.
Na tentativa de traduzirem a
força e a fragilidade da Pina, os contrastes da dor e do amor, da solidão e da
beleza, os bailarinos procuram um norte, ainda desnorteados, pela sua ausência.
Alguns recompõem suas cenas estendendo-a do palco ao mundo. É neste momento que
Wim Wenders aproxima-se da linguagem da videodança, quando, juntamente com os
intérpretes, reformulam suas cenas
em outros espaços. Um exemplo é na passagem da cena de “Café Muller”, em que
uma bailarina está sentada em uma cadeira e com o tronco abraçando a mesa. No
momento em que ela levanta o tronco e tira sua blusa, o cineasta já retoma o
plano em outro lugar. Ela debruça-se novamente na mesa, mas sob seus pés
passa-se um riacho. Neste momento o trabalho cênico já adquiriu novos sentidos.
A composição dessa cena em um outro espaço físico demanda novas interações, uma
outra apropriação do corpo em relação ao espaço, possivelmente outra leitura. Esse transporte da cena de um
lugar para outro, proposto pelo cineasta, reforça também o lançar-se do
caminhar da própria Companhia de Dança, que agora, mais do que nunca, sentem-se
solitários procurando outros eixos e reafirmando suas histórias.
No filme, Wenders ainda explora
bastante algumas cenas da obra “Kontakthof”, que foi criada em 1978 e remontada
no ano de 2000 com intérpretes maiores de 65 anos. Fundindo a essas imagens, o
cineasta interpõe também cenas do filme “Sonhos em Movimento”, que foi criado no
ano de 2009, mas lançado apenas depois deste documentário de Wenders. “Sonhos
em Movimento” trata da remontagem de “Kontakthof”, tendo como intérpretes
jovens entre 14 e 18 anos. A Companhia de Wuppertal teve a desafiante tarefa de
remontar essa obra com esses jovens, tentando repassar todo o amadurecimento do
trabalho de Pina com corpos menos experientes e não necessariamente da dança.
Aqui se instala fortemente a ousadia do pensamento vanguardista dessa
coreógrafa, que pensa a dança além dos códigos, das estéticas e das ditaduras
impostas ao corpo. O que importa para Pina é expressar-se, não no sentido
ingênuo da palavra, mas no sentido do que mobiliza essas pessoas a dançarem, a
exporem-se mutuamente, a desafiarem-se a propostas que não possuem caminhos
traçados nem respostas óbvias. É um processo de escuta, de observação, de
presença, de tentativas e erros, de fragilidades, de potências. Essa é a
estética proposta por Pina. E o movimento é consequência disso.
O cineasta utiliza os recursos da
imagem intercalando as cenas realizadas pelos jovens com as cenas realizadas
pelos intérpretes maiores que 65 anos. Em uma fila de costas, bailarinas que
trazem o peso da experiência do corpo e, de repente, ao virarem de frente, são
jovens, sem rugas. Esse jogo de cenas das diferentes versões do mesmo
espetáculo lança o espectador do filme frente à frente a essa condição humana,
da passagem, do tempo, da continuidade e da necessidade de ampliar novos corpos
como experiência de novas diversidades.
Por fim, Wim Wenders alicerçou
sua câmera diante dos bailarinos, mirando revelar suas almas, revelar o que
Pina extraía deles, fazendo-os olharem para si. As vozes e os movimentos são
ecos da própria Babel, metaforicamente dizendo, que não só rodeava Pina, mas
que também fazia parte do próprio mundo dela. Pina era o próprio mundo!