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TEMPO DE UM ESPAÇO - Texto sobre o espetáculo “Guarde-me” – Marcia Milhazes Cia de Dança

 por Carolina Natal
20/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

Fotografia: Ana Clara Miranda

"CARTA - A figura incide sobre a dialéctica particular da carta de amor, simultaneamente vazia (codificada) e expressiva (enriquecida da necessidade de significar o desejo)".
Roland Barthes

Guarde-me, dirigido pela coreógrafa Marcia Milhazes, abriga um universo de imagens sensoriais, advindas  de cartas entre anônimos, que vão sendo lapidadas através dos movimentos dos corpos de um casal, desafiados pelo ambiente sonoro, ao vivo, composto por um trio que aglutina diferentes sons: um violino, uma viola de gamba e uma espineta italiana. São instrumentos característicos do Barroco e que resistem hoje, sobretudo nesse espetáculo, reportando um resgate: permanência e possibilidade de traços dessa linguagem no contexto contemporâneo.

A obra faz alusão a cartas escritas, não presentes na cena em seu formato literal, que discorrem questões da existência, dos amores e desafetos. A tônica da obra é regada de simplicidade, de clareza nos movimentos e de um espaço cenográfico muito clean, a caixa branca. Os intérpretes e músicos estão inseridos nesse universo branco, o qual está profundamente calculado com a imposição da luz, recurso utilizado pelo barroco a fim de provocar um impacto emocional.

A precisão técnica e artística da coreógrafa se faz presente em cada detalhe impregnado tanto nos gestos quanto na própria composição cênica que se expande desde o desenho espacial entre o corpo, o espaço físico e a luz, à sensibilidade presente na delicadeza dos movimentos. Esses movimentos conciliam forças antagônicas que exprimem da alegria à tristeza, da solidão ao estar junto, da presença à ausência, organizados em contrastes que fazem parte da existência, dos conflitos humanos.

Através do duo em cena, os bailarinos perpassam por essas sensações que vão sendo transformadas pela intensidade da luz e algumas variações de cor. Com a incidência do recurso de sombras e luzes, os intérpretes também compõem essa imagem que vai se transformando em função do que essas supostas cartas, que não estão presentes na cena, apenas no pretexto dramatúrgico, vão revelando.

Cabe dizer que Milhazes conciliou em sua obra a composição em diagonal, recurso do barroco que intensifica a sensação de profundidade. Tal estratégia transportada para a linguagem coreográfica, em diálogo com as luzes e sombras que vão acenando as intensidades, provoca um estado sublime que evoca algo sagrado, algo potente que se sustenta até sua desaparição. A cena inicial impacta com essa trajetória em diagonal, na direção do fundo. A bailarina em cena atravessa lentamente esse percurso, que parece distante, longínquo, quase sem limites. Flutua-se nessa amplitude de volume espacial que se projeta rumo ao infinito que não se enxerga. Essa mesma diagonal é retomada ao final, mas no sentido inverso, em que a bailarina atravessa do fundo para frente e sai da cena. Esse contorno, descrito corporalmente, é impelido pela força da profundidade espacial que pode remeter não só ao espaço, do perto ao longe, mas ao tempo, as dobras do tempo. O tempo presente, o tempo passado das memórias e as projeções do futuro. São dobras de si que condensam relações de afetos independente das distâncias e das temporalidades. São inscrições que arriscam subjetividades múltiplas.

Fotografia: Ana Clara Miranda
A dança entre o casal alterna momentos de solidão com momentos em que se compartilham a vivência a dois. Com estratégias coreográficas do contato corporal em duo ou da ausência deste contato, os intérpretes exalam as sensações do choro, da alegria, da compaixão, da angústia e permeiam os dramas existências. Ilustro, diante dessa reflexão escrita, as palavras do autor Roland Barthes, “CONTACTOS – a figura diz respeito a todo o discurso interior suscitado por um contato furtivo com o corpo (e mais precisamente com a pele) do ser desejado”. De maneira singela, Milhazes extrai situações do afeto sem ornamentos exteriores, nem mesmo as cartas estão em cena, pelo contrário, está tudo contido nos próprios corpos e potencializado pelo jogo das luzes, muito lúcida e assertiva.

É a exuberância do movimento que não se apega a formas, mas a sensações que provocam desenhos efêmeros que se dissolvem em paisagens estéticas, deixando rastros de impressões sensitivas. A obra passa longe do clichê seja das cartas, seja do amor ou seja dos dramas existenciais. Todos esses elementos são cuidadosamente articulados em cena transformando-se em delicadas naturalidades e, por isso, acessa o espectador de forma muito íntima e singular. O realismo traduzido no gesto ativa diretamente a cumplicidade do público que sente, de forma sensível, as fruições dissipadas pelos bailarinos guardadas no tempo de um espaço. Guarde-me é um apelo poético para o afeto do cuidado, do amor, independente do tempo e do espaço, que habita no próprio corpo, como memória viva ou como desejo de porvir.