por Carolina Natal
17/06/2017
Esta resenha compõe o Festidança (2017)
realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos -
SP.
Fotografia: Mariana Moraes |
Maria Elvira
Machado traz à cena Embrio_linha_, sua
pesquisa corporal fundada nos estudos da embriologia, que estuda a formação
dos órgãos e sistemas a partir de uma célula. Aliada a essas referências, sua
pesquisa transita entre as noções e sensações somáticas do corpo, que permitem
ampliar não só a noção do movimento físico, mas o entender por meio da conexão
entre corpo e mente.
Antes de acessar
o espaço propriamente da cena, somos imersos em um ambiente que nos acolhe
expondo o universo em que a intérprete transita em suas pesquisas. É uma
instalação de livros que são o próprio suporte e eixo da sua construção cênica
e para além dela. As referências variam de Peter Brook, Kazuo Ohno, Georgio
Agambem, Didi-Huberman, Suely Rolnik, Bonnie Cohen e os clássicos Atlas de
Anatomia entre tantos outros. Além dessa “ponte” através dos escritos, existem
duas pessoas deitadas ao chão que são cuidadas por dois colaboradores do
projeto. É uma experiência sensorial que convida o público a sentir, a
perceber, a observar.
Na cena, e
espaço é compartilhado entre a intérprete e diretora Maria Elvira Machado, o
músico que propaga o som ao vivo e alguns artistas colaboradores locais, da
cidade, que participaram de seu workshop e se disponibilizaram para a cena do
espetáculo.
Fotografia: Carolina Natal |
Maria Elvira e
os artistas colaboradores estão cuidadosamente enrolando um pedaço de papel com
linhas de costura, como membranas, que são distribuídas para algumas pessoas do
público. Recebi essa “prenda” e desenrolei o fio. No pequeno papel: “se levantar contra a gravidade”. Guardei essa
informação.
Maria Elvira
inicia com três colaboradores em cena. Harmonizam-se num fluxo de intensões,
ritmos e organizações corporais. São corpos que propõem um sistema de relações
como organismos unicelulares que se arranjam em tecidos.
Eles saem de cena e Maria Elvira coloca um
carretel de linhas em sua boca, como se o engolisse, e se despe, ocupando um
canto do palco. De costas, nua, ela risca seu corpo em linhas contínuas como se
estivesse traçando os caminhos das células, mobilizando o que há de invisível,
de micro, de imperceptível. Há uma possível leitura de regressão ao estágio
embrionário, momento das primeiras modificações do óvulo fecundado, que vai dar
origem ao indivíduo adulto.
Ao mesmo tempo
em que ela traça esses caminhos corporais na própria pele, tatuando-se do que
pertence a si, do que faz parte de uma memória corporal, há a projeção de um
vídeo que reforça as mesmas imagens que são produzidas por seu corpo em cena.
No entanto, essa projeção não é em tempo real e as imagens ressoam como ecos
que se multiplicam como mitoses. De forma muito poética, essa nudez explicita
esses caminhos como materialização de possibilidades de reconhecer no corpo seu
próprio eu, sua origem, seus sistemas e suas trajetórias que contemplam o que
se é hoje.
Essa projeção
amplia o olhar e a sensação ao focar todos os cantos do corpo pelo qual Maria
Elvira retorna e que, ao vivo, às vezes não conseguimos captar as passagens
entre as curvas e os detalhes. Somos transportados para perceber a pele e,
implícita a ela, o sistema esquelético, o sistema orgânico, o sistema muscular,
os ligamentos, os fluídos, o sistema endócrino e o sistema nervoso. Todos esses
sistemas estão ligados aos estudos somáticos do corpo e, mais especificamente,
o Método Body-Mind Centering.
Durante essa
projeção, existe o som off da imagem que é a voz da própria intérprete que vai
estendendo o movimento em diálogo com essa fala, com a finalidade de
compartilhar com o público sua pesquisa. Sua voz soa, como diria Manoel de
Barros: “A voz de um passarinho me recita”. Através da voz da intérprete, "recitam-se" sensações, percepções, estados de atenção, associações, absorções. No vídeo,
inclusive, existe a edição desses traços, a imagem retorna e o traço se apaga,
pronto para se regenerar. É uma composição que se faz e se refaz o tempo todo. O público recebe essa história e tenta
passear, imaginariamente no seu próprio corpo, sob o comando dessas linhas. Além das
questões mais físicas, lê-se também nessa obra um retorno a si que também
provoca uma investigação inquieta com questionamentos sobre quem somos, como
nos formamos e que corpo é esse.
A intérprete
veste-se de camadas de roupas, cobrindo sua pele e seus traços, como camadas de
sistemas que vão sendo preenchidas, habitadas ou expressadas. Maria Elvira vai
retirando a linha que reservou em sua boca, no carretel. Ela desenrola e puxa o
longo fio que vai saindo de si, como se fosse um cordão umbilical,
subentendendo-se a ideia de externar e trazer à tona as imagens que pertencem à
formação do indivíduo e à composição dos sistemas do corpo.
Maria Elvira
simboliza, através desse fio, algo que se desenrola de si como se fosse
inerente ao seu corpo, como se a potência dessas percepções transbordasse seu
corpo e, a partir daí, acessa-se os ligamentos, as transições entre os ossos, o
fluxo do fluido que mobilizará diferentes áreas, as glândulas individuais do
corpo, a regulação das diversas funções corporais e tantos outros sistemas. Sua
dança interliga essa pesquisa e amplia seu corpo, não só de movimentos, como de
relações.
Ela finaliza
juntamente com os artistas colaboradores que retornam ao palco com uma linha de
tricô e eles vão enrolando seu corpo com essa nova membrana. Um outro ligamento
ou tecido regenerado que será explorado pelo movimento, pelo gesto, pela
sensação e pela dança.
Embrio_linha_ é como um fio de Ariadne, que possibilita
regressar a algum local já habitado anteriormente, através das pistas, dos fios
e das linhas que funcionam como marcas, como registros que possibilitam o
retorno a eles. Uma possível leitura que nos lança a incansáveis e necessárias
regenerações, tanto físicas quanto emocionais.