por Carolina Natal
12/06/2017
Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela
Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP.
“Tato...
mas
o tato me dá a consistente realidade
de minha presença no mundo”
(Ferreira Gullar)
A obra Espaço Interior da coreógrafa Layla
Mulinari expande-se através da pesquisa da Eutonia. A Eutonia foi criada por
Gerda Alexander (1908-1994) com o intuito de reeducar o movimento, ampliando-os
para além da imitação e dos gestos estereotipados. A finalidade dessa prática é
permitir que o aluno tenha autonomia para perceber seu próprio corpo e propor
movimentos que sejam construídos a partir da relação com o tônus. O tônus
corporal regula o corpo não só em movimento, como também no repouso. A
organização anatômica, a postura, o sistema nervoso, entre outros, é
interferido pela noção do tônus. E, além dessas impressões concretas, o tônus é
atravessado pelos pensamentos, pelas emoções, pelas sensações, portanto, ele
abrange funções que, às vezes, vão além da capacidade do corpo identificar e
tentar ajustar, corrigir, soltar, ceder, acionar...
Nesse contexto,
a obra propõe uma revelação do mundo interior das pessoas, através dos
intérpretes. Uma espécie de encontro com seu próprio corpo que vai, progressivamente,
ativando camadas e mais camadas, liberando as tensões e rasgando o caminho do
movimento que vai adquirindo mais qualidade, mais consciência e, naturalmente, acessa
uma essência. Essa essência se constrói alinhada à própria pedagogia da
Eutonia, que se propõe a pesquisar: a pele, os ossos, o contato, o espaço
interior e o transporte, que está ligado ao apoio.
O trabalho
inicia com os intérpretes mobilizando, de forma individual, seu corpo, através
de seus movimentos. Todos vestidos de branco, luz clara, um espaço que traz a
sensação de clareza, de transparência, de amplidão. Esses corpos vão,
lentamente, alinhando e organizando os ossos, através da estética de um
movimento que perpassa a sensação. Toda essa percepção individual se dá pela
expressividade da dança de cada um, que às vezes, coreograficamente essa
sensação deixa de ser individual e se conecta com outro. Essa dinâmica entre o
movimento individual e o movimento coletivo se retoma o tempo todo durante o
espetáculo. São ligas que momentaneamente por ora se conectam entre eles, por
ora se conectam entre si. No entanto, mesmo a aparente desconexão está ligada a
uma unicidade que pulsa como um todo.
O silêncio
também invade a cena, em alguns momentos. É um silêncio necessário que designa
o contato consigo, designa o movimento que escapa independente do ritmo que se
estabelece no exterior, designa reconhecer-se no próprio abrigo.
Gaston Bachelard,
em seu livro “A poética do espaço”, propõe uma reflexão acerca dos diversos
espaços, fazendo uma analogia com as imagens que se desdobram da casa. A casa, como
um símbolo, abriga o universo das pessoas. Nesse sentido, é como se o
espetáculo fosse revirando, delicadamente, e acessando cada canto do corpo, da
sua própria casa. O ninho, que normalmente simboliza o descanso tranquilizador.
As gavetas, que condensam memórias, objetos, roupas. Os cofres, que escondem o
que se pretende zelar, proteger. Os cantos, que normalmente são espaços
reduzidos que gostamos de esconder. São nesses cantos que se escondem a
solidão, a escuridão e, às vezes, um refúgio de imobilidade.
Os bailarinos
não param de buscar esses espaços e até esses cantos do corpo, que normalmente insistem
em se esconder e, metaforicamente, são acionados e revelam nada mais nada menos
que seu próprio universo. As miniaturas presentes na casa exigem cuidados, por
serem tão pequenas, e são como os movimentos mínimos, que expõem detalhes
fundamentais para os retalhos do todo. Essa imagem da casa é a própria imagem
do corpo, de habitar o espaço em que se está. A coreografia expõe a “casa” de
cada um como uma imensidão íntima.
Ao longo do
espetáculo, os bailarinos vão se despindo da roupa branca e se vestem de cores,
de outros tecidos, de novos cortes que moldam praticamente outra pele, que está
cada vez mais apta e conectada com seu próprio eu. O espaço interno e o volume do
corpo se ampliam, possibilitando a entrada de outros corpos, para comporem
sensações e movimentos juntos, através dos toques, dos apoios, do transporte do
corpo sobre o outro.
A obra também
possui uma dinâmica do fluxo respiratório, criando ritmos individuais, e da cumplicidade
dos olhares entre os bailarinos que, de canto em canto, vão ocupando todos os
espaços e habitando o todo, tanto do dentro quanto do fora. O movimento se expande entre o micro e o macro. Do sutil,
o delicado e, às vezes, imperceptível, para todos os cantos do palco, do corpo,
e das sensações que não se encerram apenas sobre a obra artística, mas que
permanece nos nossos corpos, enquanto espectadores, que tentamos permanecer com
o registro dessa fluidez e da sensação de que o corpo tem um mundo de
possibilidades para se articular.