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Narrativas editadas - Texto sobre o espetáculo “Devolve 2 horas da minha vida” – direção de Alex Soares

 por Carolina Natal
16/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 

A intertextualidade entre um filme, Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock, a dramaturgia da dança e questões de arte-tecnologia são as marcas da obra Devolve 2 horas da minha vida, dirigida por Alex Soares. Esse trabalho lança um olhar crítico, e às vezes satírico, a respeito da relação com que as pessoas têm estabelecido com o excesso de tecnologia, sobretudo, o uso do celular.

Janela Indiscreta é um filme (1954) em que Hitchcock trata da vigilância da vida alheia a partir da janela de um apartamento. Desta janela, o ator do filme, com seu binóculo, passeia por diversas intimidades e, a partir das imagens que consegue observar, constrói narrativas. Essas narrativas produzidas por essas imagens são praticamente “editadas” segundo a ficção que convém ao mapeamento de quem recria essa história.

Transpondo essa ideia para o corpo, através da dança, Soares criou um aplicativo para ser usado ao vivo durante o espetáculo. Esse aplicativo caracteriza uma estética da imersão, em que o público participa da obra em tempo real. Tal recurso faz desse espetáculo uma obra interativa, propondo e convidando o público a reagir via esse recurso tecnológico.

As inversões e estranhamentos iniciam já com os três sinais que precedem o espetáculo. O som habitual da campainha fora substituído pelo som de alerta de mensagem do celular. O que já inverte a ordem habitual das coisas é justamente a possibilidade desse som ser ecoado dentro de um Teatro. Por conta disso, na plateia, existe uma agitação incomum, fruto da curiosidade de como manipular esse aplicativo, normalmente proibido nesse ambiente e, justamente, como ele será usado em cena.

No palco, uma grande estrutura quadrada, branca. Nas laterais, cadeiras para o público. As orientações iniciais habituais do Teatro já fazem parte da obra. Projeta-se, sobre a estrutura quadrada que se encontra no palco, a moldura de um celular e, dentro dele, está o intérprete, que vai se encaixando conforme o molde muda de posição. As orientações são avessas: não desliguem o celular, tire selfies, permaneçam conectados...

Essa possiblidade de interação remete a um ambiente de jogos virtuais, como se a cena fosse uma plataforma aberta para dialogar e receber os estímulos. Neste caso, a interação do público não chega a modificar a obra, mas incita o espectador a transitar pela obsessão virtual, quase uma condição de pertencimento.

As imagens projetadas, no início, fazem alusão à obra Janela Indiscreta, acrescidas da atualização encenada pelos intérpretes nessas janelas virtuais. Nesse momento, a ideia dessa projeção ressoa sobre o próprio público, como se eles fossem os próprios voyeurs da vida alheia.

Os desenhos de luz impressos no chão possibilitam a leitura da planta de um apartamento, ou de um espaço outro. As diversas cenas que se passam no palco são como janelas de realidades que são bisbilhotadas pelo público.

O espetáculo reforça, variando o lúdico com o drama, situações que beiram o absurdo. Tornam-se cômicas com doses trágicas. Além do público acompanhar as cenas ao vivo, o aplicativo envia mensagens sinalizando intervenções a serem feitas: enviar fotos para um fulano, pausa para selfies, abrir blackout, chamar pelo garçom, entre outras....

Na verdade, essas possibilidades encadeiam ações que extrapolam a cena no palco. Elas “incomodam” propositalmente o espectador criando mais dispersões e comandos. A reflexão que se instaura é o próprio uso abusivo desses comandos, que são gerados excessivamente na vida real e que se desdobram em variadas funções.

O palco torna-se uma metáfora da ampliação de cada janela. Uma mulher dança ao som de um piano ao vivo, como se sua vida estivesse aberta para ser observada. Seus movimentos escancaram uma bebedeira emocional, um desequilíbrio que se expande em seu riso descontrolado. Riso em movimentos que provocam uma dança que tem um contorno estético exposto na qualidade de cada surto gestual. Em seguida, um rapaz insere-se ao movimento e a cena vai exibindo um conflito que se expressa nos abraços que grudam, desgrudam e novamente grudam, como uma dependência mútua, uma perseguição de afetos.

Outra cena trata da mulher que está sendo praticamente abusada por dois homens. Ela paralisa a cena e reorganiza, ditando os comandos de sua edição conforme suas intenções espetacularizadas. São diversos pontos de reflexão sutilmente lançados nesta pausa, aparentemente lúdica:  a edição do que realmente é; do que pretende ser mostrado; como se pretende ser visto e qual a expectativa esperada em função dessa imagem.



Essas pausas dos selfies são paródias da realidade, sátiras da exposição diária que fazemos de nossas vidas, quando compactuamos em compartilhar cenas das mais banais às mais íntimas em redes sociais. Tornamo-nos espiões e somos espionados. Vigiamos e somos vigiados. Mas, diferente da realidade, podemos editar essas imagens e construir novas narrativas, propor novos modos de existência e confundir-se a elas.

Modelam-se consciências ilusórias e a vida dos outros passa a ser vista/observada/seguida/ segundo as edições do que se vê e do que se quer que seja visto. São contradições que emanam criatividade, tempo e dedicação. Em outras palavras, perde-se tempo para construir uma imagem. Refazer, então, requer mais e mais.

Ao final, os comandos do aplicativo convidam o público a experimentarem os óculos 360º. Os espectadores que subiram ao palco inserem seus celulares nesses óculos de papelão e saem caminhando lentamente pelo palco. Esses óculos são outras janelas que se abrem e é permitido somente a esses usuários que acionaram o aplicativo para terem essa outra perspectiva voyeurista. Quando se percebe, os bailarinos já não estão mais em cena, saíram atravessando o público, fizeram selfies do grupo e deixaram as pessoas “confinadas” nesse ambiente ora virtual, ora real. Tornamo-nos marionetes vulneráveis à espera do controle virtual sinalizando direções e reações. Nossos sentidos ficam bitolados nesse jogo de realidades inventadas, que fazem-nos sentir perdidos na ausência deste.

No palco, além dos usuários que estão em cena, foi deixado um manequim, um boneco, no chão, vestido com uma camisa com estampa do código em barras, que exige o aplicativo para ser lido e reconhecido. Levantei-me para identificar o próximo comando que restava ao público. Várias pessoas se aglomeraram ao redor desse corpo-boneco para descobrirem pistas do que se fazer. Era o comando que indicava uma ação de forma explícita.... Em seguida, o público aplaudiu!