Tecnologia do Blogger.

Texto sobre o filme “AS CINZAS DE DEUS”

 por Carolina Natal
15/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 




Metamorfoses, de Ovídio, é o tema inspirador da obra Cinzas de Deus (2003), um longa experimental que dialoga com a dança na imagem em movimento, dirigido por André Semenza, com a Cia Zikzira criada e dirigida por Fernanda Lippi.

Cinzas de Deus é uma adaptação da primeira parte de Metamorfoses. A dramaturgia do filme é delineada pela trajetória da personagem Helô, uma mulher que se encontra com outras personagens, misturando sonho e realidade.

A estética do filme retrata espaços que provavelmente foram habitados um dia, mas atualmente se encontram vazios, abandonados pelo tempo, pela ausência de sentidos. No filme, só existem as personagens que são presentes na obra. Não existe nenhuma presença física, outra, que não seja a de um bailarino que está imerso em sua composição coreográfica. A ocupação desses bailarinos nos diferentes espaços, que possuem como denominador comum a ideia do abandono e da solidão, é o que faz reavivar não só os espaços físicos adormecidos, como também os próprios corpos.

Metamorfoses, de uma forma literal, trata da transformação do homem em animais, em plantas e minerais. Resgatando essas intenções primeiras para o contexto do filme, pode-se ampliar essas imagens para um estado corporal que se proponha a alterações e variações, em forma de dança, que são provocados por essa imersão nesses espaços físicos e emocionais.

São corpos que, lentamente, vão tentando transformar-se em função do ambiente em que estão. Ambiente sombrio, lúgubre, no entanto, cobertos pela poesia de capturar e redefinir novas sensações que se alteram de acordo com as corporeidades que são provocadas por cada um. Os corpos iniciam deitados ao chão, enraizados, debruçados sobre a terra, elemento que também se conecta à natureza e aos seres mitológicos. Suas vestimentas e o próprio espaço são rodeados da cor terra, ora mais avermelhadas, ora mais ofuscadas. Seus corpos confundem-se ao próprio espaço: a terra e a natureza.

Cada corpo vai construindo sua corporeidade conectada a esses espaços. Cada um encontra sua forma de se expressar, de dialogar, de habitar cada canto. Cada corpo se move tentando encontrar um novo eixo, um riso corporal que balança os corpos e provoca uma tonicidade contorcida. Poeiras sobressaem do chão, da própria terra, de acordo com a intensidade dos movimentos que espalham a noção do próprio espaço.

O filme não tem uma preocupação em contar uma história linear e nem apontar planos que construam continuidades de cena, pelo contrário, ele é organizado de forma a enlaçar uma coerência que se dá por construções de diferentes personagens, cada qual com seu tempo, cada qual habitando um espaço e, às vezes, os mesmos. Devido à estruturação cinematográfica, que permite a ideia do tempo síncrono, as imagens passeiam para diversos lugares, mas podem ser lidas com a possibilidade de serem todas simultâneas.

O recurso do cinema, facilita, ainda, neste caso, a mistura entre o sonho e a realidade, pois um plano pode dar sequência a outro, como se fosse um dispositivo de retorno ao tempo, às memórias. Isso dá unidade à obra, pois não se distingue o que é sonho do que é realidade. Ambos caminham juntos, tentando construir novos tempos de presença que reforçam a expressividade de corpos que evocam e gritam silenciosamente por recomeços, como um renascer.

Enquanto os intérpretes vão acessando seus gestuais, transformados pelo próprio espaço e pela experiência dessa conexão, que abriga também a ideia de corpos frágeis, o exercício da câmera, que capta as imagens, contrapõe-se a essa imprecisão de movimentos que é inerente a esse processo de metamorfose. A câmera detém uma precisão clássica sobre cada posição de câmera, sobre cada ângulo e sobre cada foco. Não hesita, não vacila. A câmera mostra-se interessada naquilo que ela pretende ver, sem rodeios. Essa captação certeira, exata, permite ao espectador adentrar nessa construção cenográfica que, embora taciturna, revela a delicadeza e a essência de cada tijolo da parede desgastado pelo tempo, de cada musgo impregnando o muro e de como esses intérpretes vão iluminando seus próprios corpos e tornando esse espaço um agregado. Um agregado que permite, em função do vazio e do silêncio que ele propõe, ser moldado pelos intérpretes. É um espaço do corpo ou o corpo do espaço que a imagem atravessa com propriedade.

É bastante evidente que o diretor da obra não utiliza os recursos da imagem para criar outra coreografia a partir da edição, como o poderia fazer. Pelo contrário, ele opta por manter a inserção da câmera como um aliado lúcido que permite ao espectador inserir-se em todos os ambientes, visitando-os, percebendo-os, acessando o espaço de forma tão íntima como a câmera o faz. Se os espaços pensam em provocar algum estranhamento ao público, a câmera se ocupa em conduzi-los.

A relação estabelecida entre o espaço-corpo-imagem comporta preciosos momentos, imagens de pensamentos que se alternam entre os recortes de corpos, com corpos entre as janelas vistas de fora, por detrás de galhos de árvores, submersos na terra apenas com os braços de fora; com os corpos em plano geral, na íntegra, arrebatados das terras, das cinzas, transformados pela experimentação espacial, pela relação estabelecida entre os bailarinos, pela composição coreográfica de cada um, e pelo olhar da câmera. Esta última, dirige nossos olhares, conduzindo-nos a articular os sentidos, a apreciar e extrair as sensações e as poesias, presentes tanto na estética da imposição da beleza quanto na estética do não belo.