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As giras da diversidade - Texto sobre o espetáculo “Quero ser preto” – uma coprodução entre o Núcleo Arcênico, Cia Azul Celeste e Casa de Criar.

 por Carolina Natal
14/06/2017

Esta resenha compõe o Festidança (2017) realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo - São José dos Campos - SP. 


 Fotografia: Paulo Amaral
                                         
Através de diversas simbologias e imagens sagradas, construídas no próprio corpo e no movimento, a obra Quero ser preto mistura diversas linguagens artísticas presentes na dança, no teatro, nas artes visuais e na performance. De forma integrada, o diretor e roteirista Jorge Vermelho enlaça uma trajetória que parte de onde tudo começou: Gênesis.

Gênesis refere-se à História da Criação, um livro bíblico, que trata do princípio e da origem do mundo criado por Deus. Com três intérpretes em cena, esses corpos discutem, ao longo da dramaturgia do espetáculo, uma profunda relação existente entre o preconceito que se revela, ao mesmo tempo em que se oculta, nas religiões, na cultura, na raça e no gênero.

Com sutis movimentos, o espetáculo inicia com uma leitura corporal oriunda da Umbanda, que é uma religião brasileira que abriga referências africanas, cristãs e indígenas. Impregnados das imagens dos orixás africanos, os intérpretes abrigam o mundo, a partir dessas referências, e lançam movimentos de Ogum, Odé, Oxum. Ao fundo, são projetadas diferentes cores, como longas faixas, que também dialogam com esses orixás. Seus gestos, embora suaves, expõem a precisão de cada significado: espadas, arco e flecha, águas e espelhos imaginários. Essas referências gestuais trazem, intrínsecos a si, imagens de guerreiros, de caçadores, de simbologias de purificações, entre tantos outros movimentos que permitem escapar outras imagens referentes a outros orixás.

Ao final dessa profusão de gestuais, que comportam tradições e crenças, projeta-se a imagem “A Criação de Adão”, de Michelangelo que, segundo o Gênesis, é a criação do primeiro homem: Adão. E, metaforicamente, criou-se o mundo.

 Fotografia: Paulo Amaral
A partir de rituais, em que o corpo se torna disponível para receber as forças, os bailarinos evocam guias e protetores. É no terreiro que se vivenciam as festividades, as celebrações e devoções. A cena ocupa-se de entidades, como pretos velhos e crianças. Na criança, inclusive, além da veste rosa e da coroa de princesa, o trabalho artístico insere, ainda, a imagem da bailarina clássica, com pontas nos pés. Uma  suposta alusão a algum contraste ou conflito. Ao mesmo tempo, um intérprete desenha na cortina branca de papel, ao fundo, traçando diagramas, desenhos ondulados, são os pontos riscados, que também acompanham e caracterizam os rituais, assim como as giras, que trazem o movimento circular, no próprio eixo ou deslocando-se.

Esses papéis em forma de cortina, que foram desenhados os tais pontos riscados, são retirados da função cortina e amassados ao chão. Em seguida, os intérpretes vestem-se desses papéis e compõem trajes diversos no corpo, por ora turbantes, por ora saiões, como se acessassem uma memória suntuosa, pomposa, luxuosa, desfilando sua identidade, confirmando seu pertencimento. Esse visual se contrapõe imediatamente à letra da música de Elza Soares, A Carne, e os bailarinos incorporam essa sinestesia provocada pela reflexão desse contraste visual com o sonoro.

Nessa plataforma chamada terreiro, em que coabita e interliga o ancestral ao presente, como espaços que se condensam e se dobram juntos, a ideia do terreiro se amplia para trazer embates e resistência ao que se marginaliza na sociedade atual. São como as heterotopias que, segundo o escritor Michel Foucault, designam os espaços outros.  O escritor pensa o espaço como relação de poder. É como se esses espaços outros fossem ocupados e representados pelos marginalizados, não aceitos, desviados. São os espaços de conflito. Essa obra artística utiliza alguns ícones religiosos, como símbolos e representações, os quais repercutem ressonâncias que extrapolam ao específico terreiro da Umbanda. A Umbanda é apenas uma via, uma forma, mas que possibilita desdobramentos universais conectados e dialogados com as questões contemporâneas, atuais.


 Fotografia: Paulo Amaral
Em alguns momentos, a obra dialoga com as imagens projetadas em tempo real, do próprio espetáculo, como ampliação das imagens ao vivo, que são captadas em cena, por um dos intérpretes. Com a câmera na mão, a imagem que se projeta traz uma percepção, às vezes, trêmula, que convida à leitura do frágil e do efêmero.

“Quero ser preto” ressalta o compromisso entre o sagrado e a memória afetiva, através dos orixás e entidades, elaborando um gestual que se direciona para o percurso interior, sensível, inundado de ancestrais como um inconsciente coletivo e individual. A cena final se constrói a partir de várias imagens projetadas, que vão se justapondo umas às outras, de diversas formas de dança, de expressão, através de giros. O giro da bailarina clássica, o giro de cabeça no chão do hip hop, o giro da mulher maravilha. São muitas as formas de giros que, nesse contexto, dialogam com a gira da umbanda, pela intérprete em cena. Todos elas coabitam o mesmo espaço. Todos elas existem e se fazem existir. Todas podem conviver.

A gira final expressa-se no movimento de um bailarino que, com roupas prateadas, insere-se ao centro do palco e gira, lentamente, gira, gira, gira....  Outro bailarino se aproxima e vai espirrando spray preto sobre seu rosto e seu corpo. Sublime imagem que se transforma diante do público. Quero ser preto torna-se um local que não só abriga, mas expõem os vários preconceitos que se traduzem de várias formas. A cor é apenas uma delas.